A frase “Quebec Livre” foi escrita em um muro na cidade de Quebec, em 2006| Foto: reprodução/Cary Bass/Wikimedia
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Tem alguns anos que movimentos independentistas, separatistas e nacionalistas ocupam parcela considerável do espaço de debate de política internacional. Catalunha, Brexit, Kosovo, Ucrânia, dentre outros exemplos mais ou menos conhecidos. Existe, porém, um movimento separatistas que anda em baixa, mas nem por isso deixou de existir ou ficou enfraquecido. Ao contrário, ainda possui quantidade considerável de apoiadores e tem um marco cronológico nesse dia 30 de outubro. Trata-se do movimento soberanista do Quebec, a província francófona do Canadá.

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Em 30 de outubro de 1995, vinte e cinco anos atrás, os cidadãos do Quebec foram às urnas votar em um referendo. A pergunta foi: “Você concorda que Quebec deve se tornar soberano após ter feito uma oferta formal ao Canadá para uma nova parceria econômica e política no âmbito de um projeto de lei sobre o futuro de Quebec e do acordo assinado em 12 de junho de 1995?”. O acordo citado foi o que autorizou o referendo e reconheceu sua validade legal, com a condição de um acordo econômico e político entre o Canadá e o possível Quebec independente.

Tal acordo seria necessário especialmente pelo fato de que o Estado do Quebec deixaria o Canadá repartido em dois, prejudicando fluxos populacionais e econômicos, ao menos no curto prazo. O voto teve o maior comparecimento eleitoral da História da região, com 93,5% dos cinco milhões de eleitores, uma taxa quase inacreditável para uma eleição facultativa. E foram 0,58% dos votos que decidiram a eleição. Para ser mais preciso, as 54.288 pessoas que votaram contra a independência.

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Guerra Fria

Já se esperava que o resultado causasse reações emocionadas, qualquer um que fosse. A margem estreita deixou a situação ainda mais dramática. Pedidos de recontagem, denúncias e investigações sobre cada urna de cada seção eleitoral. O assunto ficou dez anos no judiciário canadense, mas foi resolvido. Talvez tenha sido o auge de popularidade do movimento pela independência do Quebec, após décadas de Guerra Fria, cujos gastos militares, divisões ideológicas e tensões internacionais contribuíram para a causa separatista, vista como uma maneira de se desvincular desses problemas.

Durante a Guerra Fria, inclusive, operou o grupo de esquerda Front de libération du Québec (FLQ), uma organização militante classificada como terrorista pelo governo canadense. O FLQ realizou dois atentados de grande repercussão. Uma explosão na bolsa de valores de Montreal em 1969, sem vítimas fatais mas com grande prejuízo financeiro, e o sequestro do vice-governador de Quebec, Pierre Laporte, e do diplomata britânico James Cross, no episódio que ficou conhecido como Crise de Outubro, em 1970, cinquenta anos atrás.

O então primeiro-ministro era Pierre Trudeau, pai do atual premiê, Justin Trudeau. Ele convocou o uso de força militar em apoio ao aparato policial. Centenas de pessoas foram detidas e Pierre Laporte foi assassinado pelo FLQ. Após a solução negociada para o fim da crise, o homicídio motivou a prisão perpétua do líder do FLQ, Paul Rose. Uma sugestão de documentário para o leitor que se interesse é o Black October. Ao fim, a Crise de Outubro teve um sabor agridoce para o Canadá.

Por um lado, o que foi visto como um ato de violência desnecessária do FLQ diminuiu o apoio popular ao uso da violência como ferramenta para a independência. O grupo também sofreu enormes prejuízos ao ter parte de suas lideranças presas e dois arsenais de células regionais confiscados. Por outro lado, o grupo conseguiu atrair atenção suficiente para uma solução negociada politicamente, para evitar possíveis novos atos de violência. Isso é refletido na conquista de um referendo pela independência em 1980 e o movimento ganhou mais força com a aprovação da constituição em 1982, que foi vista como passando por cima da vontade dos cidadãos de Quebec.

Fundação e identidade

A derrota dos independentistas em 1995 foi “remediada” de forma simbólica pelo parlamento canadense em 2006, quando os quebequenses foram reconhecidos como uma “nação própria dentro uma federação canadense”. Ou seja, reconhece a população e a cultura enquanto rejeita a ideia de um Estado separado. E qual o motivo dessa diferença cultural? Tentando resumir quatrocentos anos de História em algumas linhas, o Quebec foi colonizado por franceses, enquanto o restante do Canadá foi colonizado por britânicos.

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Quebec foi fundada como colônia francesa em 1603, e assim permaneceu até 1763. Hoje, um terço da população local se declara como francesa, o francês é a língua oficial, usada pela maioria da população. Outra diferença é religiosa, com mais de dois terços da população sendo católica, em contraste ao protestantismo do restante do Canadá. Mesmo após a vitória britânica na Guerra dos Sete Anos, a identidade local foi fortalecida e foi centro de disputas nos séculos posteriores. Outra consequência dessa diferença é que existe uma grande comunidade haitiana no Quebec, cuja adaptação é facilitada pela francofonia.

A derrota no referendo não significou o fim do movimento separatista. O movimento possui muita força partidária e o Bloc Québécois, uma coalizão partidária pela autonomia e eventual independência da região, já governou a província diversas vezes e também possui presença razoável no parlamento nacional. Para lembrar dos vinte e cinco anos do referendo, o jornal Le Journal de Québec realizou recentemente uma pesquisa de opinião sobre como seria um novo referendo hoje. Provavelmente a independência não seria escolhida, mas 36% dos consultados votaria pela separação, com 18% de indecisos. Números que não podem ser desprezados.

Como curiosidade, um Quebec independente seria o 19º maior país do mundo em área, maior que Peru, Colômbia ou Angola. Seu Produto Interno Bruto em valores absolutos não seria de grande destaque, por volta da 40ª maior economia; entretanto, dada sua diminuta população de oito milhões de pessoas, seu PIB per capita seria comparável ao do Japão. O símbolo da economia local é a empresa Bombardier, cujo nome francês já explicita a conexão. Além disso, o Quebec possui largas reservas minerais e de recursos naturais.

Novamente, a independência do Quebec é improvável em 2020 ou nos anos próximos. Não há grande demanda por isso, tampouco um contexto favorável, e eventuais problemas de uma separação nunca foram seriamente discutidos, como a ruptura da continuidade territorial canadense. Ainda assim, é um lembrete que desmistifica a ideia de que o mundo, ou algumas regiões dele, são um oásis de tranquilidade, sem discórdias, sem disputas, sem cicatrizes recentes. O Canadá é uma federação estável com ótima qualidade de vida, mas, até ontem, podia ter rachado ao meio.