O período da Guerra Fria é lembrado não somente pela tensão internacional e a sensação de uma iminente Terceira Guerra Mundial, mas também por alguns símbolos culturais do período. Filmes, eventos esportivos marcantes, a foice e o martelo e o Muro de Berlim são alguns desses exemplos, mas talvez o mais conhecido seja um fuzil de assalto com uma silhueta inconfundível, o soviético AK-47, que “faz aniversário” de setenta e cinco anos no dia seis de julho de 2022, dia do início de sua produção.
O nome AK-47 significa Avtomat Kalashnikova em russo, “Kalashnikov automático”, nomeado pelo seu designer, o engenheiro Mikhail Kalashnikov, mais o ano de sua produção, introduzido em serviço no ano seguinte. Nas décadas seguintes, tornou-se o fuzil de assalto mais utilizado do mundo. Somando todas suas variantes, com milhões de unidades produzidas em países do antigo Pacto de Varsóvia, é a arma de fogo mais produzida da História, com mais de cem milhões de unidades.
A Guerra Fria foi um período de intensas corridas armamentistas, em todos os vetores possíveis. Novos aviões, novos radares, submarinos mais capazes, milhões de veículos blindados de combate produzidos e, claro, milhares de ogivas nucleares fabricadas. Cada uma mais potente que a outra, incluindo a invenção da bomba de hidrogênio, chamada popularmente de “bomba H”, e o maior teste de uma bomba nuclear da História, a Tsar Bomba soviética, com potência de 50 megatons.
Simplicidade
O que explica, então, que no meio de uma corrida tecnológica como essa foi um simples fuzil de assalto que ganhou uma aura de símbolo do período? A resposta está, não ironicamente, na palavra “simples”. O AK-47 é uma arma de produção barata comparada aos seus contemporâneos, podendo ser feita com materiais simples. O fuzil é de fácil uso e, por ser simples em seu desenho, é confiável em diferentes condições geográficas ou climáticas, desde a selva no Vietnã até o deserto do Saara.
Além de ser um período de corridas armamentistas, a Guerra Fria foi um período de uma nova ordem internacional, o mundo bipolar entre os EUA e a URSS. Com isso, a Europa, e seus antigos impérios coloniais, fica enfraquecida, ainda se recuperando da destruição da Segunda Guerra Mundial. Guerra essa que colaborou para a emancipação de diversas populações desses mesmos impérios, formando movimentos de libertação nacional em locais que se tornaram campos de batalha.
Por exemplo, na Indochina, colônia francesa, e na Indonésia, colônia neerlandesa, ambas ocupadas por forças japonesas, guerrilhas combateram primeiro os japoneses e, depois, os europeus, que tentaram restaurar seu domínio nesses territórios. Junto com a nova ordem mundial, é assinada a Carta da ONU, que garante o direito à autodeterminação dos povos, tornando o imperialismo europeu contraditório, já que as metrópoles, como Londres e Paris, assinaram esse mesmo documento.
Novos países pelo mundo
Claro que essa é uma brevíssima contextualização do processo de Descolonização que ocorreu durante a Guerra Fria. Em três ondas distintas, diversos países conquistaram sua independência. Alguns pela via negociada, outros pela força das armas, como as guerras de independência na Indochina, na Argélia e no antigo império português. Guerras travadas por pequenos movimentos de libertação nacional em praticamente todos os cantos do globo. Tornando ideal e essencial uma arma como o AK-47.
Isso gerou uma demanda inédita para um armamento. O fuzil foi produzido não apenas no Pacto de Varsóvia, mas também em Israel, China, Vietnã e outros países asiáticos e africanos. Dezenas de milhões de unidades foram exportadas ou doadas para movimentos pela independência e outras guerrilhas. Além das guerras de independência, um novo Estado passará por crises e disputas internas, seja entre grupos nacionais ou por divergências políticas e econômicas.
Essas divergências internas normais de um novo Estado acabavam sendo potencializadas durante a Guerra Fria, com as antigas metrópoles europeias, os EUA e a URSS buscando expandir suas influências, com guerras separatistas ou guerras civis. Em Angola e em Moçambique, por exemplo, cada lado da guerra civil era apoiado por uma das duas superpotências. O exemplo de Moçambique não é trivial. A vitória do socialista FRELIMO rendeu uma bandeira nacional que conta com a silhueta justamente de um AK-47.
O armamento também esteve no brasão de armas de Burkina Faso e está no de Timor Leste. Enquanto nenhuma pessoa morreu por uma bomba nuclear durante a Guerra Fria, o número de vítimas das armas de fogo pessoais em todas as guerras do período está na casa dos milhões. Independente da causa ou do contexto, se considerada legítima ou não, não se pode esquecer que a importância cultural de uma arma de fogo se dá, no fundo, por um motivo muito mais sombrio.