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O fato de setores conservadores brasileiros simpatizarem com Israel por uma série de razões não é novidade. Muitos deles são evangélicos e possuem uma visão religiosa e escatológica sobre o Estado de Israel, acreditando que ele seria sinônimo ao Israel bíblico. Tais visões de mundo, embora válidas, podem levar à idealização ou fetichização do que é visto por essas lentes, causando dificuldades de interpretar e conhecer a realidade. O Estado de Israel que existe de fato é bastante distinto desse Israel idealizado.
Na manifestação do último domingo, na avenida Paulista, em São Paulo, duas senhoras foram gravadas com a bandeira de Israel e, ao serem perguntadas sobre o motivo de carregarem o pavilhão, uma senhora respondeu “porque somos cristãos, assim como Israel”. Ao ser interpelada sobre o fato óbvio de Israel não ser um país cristão ou de maioria cristã, ela respondeu que “Israel nos representa” pois “não somos socialistas e nem comunistas”.
Religião em Israel
Existe um erro óbvio nessas falas, que é o fato de Israel ser, literalmente, o Estado judeu. Apenas 1,9% da população de Israel é cristã, a maioria desses é de árabes. É debatido até se Israel seria um Estado secular. Os símbolos do Estado são religiosos e as festas e determinações do judaísmo são lei. Um assunto amplamente debatido no país, por exemplo, é o fato do transporte público não funcionar aos sábados, o dia sagrado do judaísmo. O penúltimo governo israelense, inclusive, caiu por uma questão religiosa.
Alguns leitores talvez se lembrem da crise iniciada com o debate sobre a entrada ou não de pães fermentados em hospitais israelenses durante a Pessach, que proíbe esse tipo de alimento. O país, inclusive, somente celebra casamentos religiosos. Não existe um casamento secular por um juiz de paz como no Brasil. Por outro lado, como a ideia é que Israel receba judeus de todo o mundo, o país reconhece todos os casamentos celebrados no exterior, incluindo entre pessoas do mesmo sexo.
Essa relação com o casamento ilustra bem algumas complexidades da sociedade israelense, que vai além do uso da bandeira de Israel como praticamente um amuleto por setores conservadores brasileiros. O casamento é apenas religioso, mas há o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Porcos não podem ser criados para o abate no país, devido às leis do judaísmo, mas são criados para pesquisas científicas e o “excedente” pode ser consumido por judeus não-praticantes.
Mesmo a fala que contrapõe Israel ao socialismo e ao comunismo ignora que o país foi fundado por movimentos socialistas e comunistas. Por seus primeiros vinte e nove anos, Israel foi governado por partidos de esquerda, incluindo o Mapai, que era membro da Internacional Socialista. Quando Israel venceu as guerras de independência e a Guerra dos Seis Dias, em 1967, era governado por socialistas. Essa recapitulação histórica mostra como a bandeira que essas pessoas carregam é a da versão que existe na cabeça delas.
“Ocidente judaico-cristão”
Outro exemplo de como é falha e contraditória essa visão que associa de forma incondicional e maniqueísta Israel ao cristianismo é a relação de Israel com a Armênia. Os armênios são o primeiro povo que foi convertido em massa ao cristianismo, no ano 301, onze anos antes da conversão do imperador romano Constantino. A Igreja Apostólica Armênia deriva da missão do apóstolo Bartolomeu e 97% da população do país é cristã, sendo 92,5% membros da igreja nacional.
O que alguém que enxerga o mundo com os olhos de uma guerra cultural e que o Brasil seria parte de um Ocidente “judaico-cristão” acharia se soubesse que Israel é o principal parceiro e fornecedor de armas do Azerbaijão, uma ditadura em um país de maioria muçulmana xiita que agride e cometeu o crime de limpeza étnica contra a população cristã armênia? Mais ainda, que Israel, em nome de suas relações com o Azerbaijão e com a Turquia, não reconhece o genocídio sofrido pelos armênios em 1915?
Os interesses israelenses os aproximam, nas últimas três décadas, do Azerbaijão. Tais interesses, entretanto, são totalmente contraditórios com essa visão de mundo que fetichiza Israel e usa seus símbolos como amuletos. Colonos israelenses de extrema-direita têm cometido atos de violência no bairro histórico dos cristãos armênios em Jerusalém, interessados na terra e em um projeto imobiliário. Novamente, como coadunar a realidade com essas contradições, caso alguém opte por essa visão de mundo?
Não é a visão da coluna, obviamente. Uma boa dose de realpolitik é sempre necessária, talvez infelizmente. O atual governo israelense de Netanyahu fortalece essa ideia de “Ocidente judaico-cristão” para expandir bases de apoio político em outros países, aumentar doadores cristãos para instituições israelenses, que abundam, e também aumentar o turismo religioso, importante fonte de divisas. No fundo, entretanto, muitas dessas pessoas não enxergam os judeus como pessoas.
Política doméstica
Muitos deles veem os judeus como uma ferramenta necessária para o retorno de seu Deus e os eventos apocalípticos em que creem. Apenas isso, enxergam Israel não como o Estado que de fato é, mas como um instrumento de sua religião. Dentre os mais fervorosos sionistas evangélicos estão alguns dos maiores antissemitas. Tudo isso se conecta a outro elemento digno de nota, que é como a questão Israel e Palestina está se tornando um tema de política doméstica no Brasil e em outros países.
A inapropriada e problemática comparação feita por Lula, ao dizer que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", tornou-se o epicentro de uma discussão não somente de política externa, mas também de política doméstica. Nesse sentido, também ocorre a fetichização da bandeira palestina, tal como com a israelense, assim como a idealização de grupos políticos palestinos.
Não há dúvidas de que as relações com Israel são importantes e o país tem uma presença internacional notável, mas apenas 0,4% do nosso comércio é com esse país. Existe uma repercussão muitas vezes desproporcional quando se fala de Israel ou de Palestina no Brasil. Tal desproporcionalidade é, muitas vezes, guiada por visões superficiais ou religiosas sobre os atores envolvidos. Para um debate público de qualidade, deve-se deixar de lado os amuletos e os fetiches.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise