Nos últimos dias, foi disseminado na internet brasileira que a constituinte do Chile supostamente vai extinguir as forças armadas do país. Em tom assertivo, a afirmação chegou até a ser reproduzida em alguns meios de comunicação, sustentada por um arquivo de duas páginas e meia em castelhano, com 15 assinaturas. O rumor, além de desconsiderar a realidade política e geográfica do Chile, não é fundamentado. É “fake news” ou, em bom e velho português, mentira.
O documento é chamado “Fuerza de Paz, nuevo rol de la fuerzas armadas” e propõe algo similar ao que ocorre na Costa Rica e no Panamá, a substituição de forças armadas militares por uma força policial civil. É uma iniciativa popular de um grupo ambientalista chamado Movimiento Biocéntrico de Chile, cujos perfis nas redes sociais não são atualizados há mais de um ano e contam com apenas algumas dezenas de seguidores. O grupo não possui filiação partidária. Em suma, é um movimento pouquíssimo expressivo.
Proposta
A proposta recebeu o patrocínio de dois constituintes, a advogada e ativista Vanessa Hoppe e o professor universitário Carlos Calvo Muñoz. Outros 14c constituintes assinaram apoio ao texto. A atuação de Vanessa Hope na Constituinte é, segundo ela mesma, centrada em “articular o trabalho dos constituintes com a sociedade civil e organizações independentes”. Ou seja, justamente levar para os trabalhos constituintes propostas de organizações como o grupo ambientalista citado.
Dizer que o Chile ou a Constituinte vai abolir as forças armadas, com o verbo ir no imperativo, não é verdade. Essa é a mentira clara e óbvia, ou, no caso dos que compartilham o rumor sem dolo, engano. Trata-se de uma proposta, feita por um grupo pouco expressivo, levada para a constituinte por uma representante que rege sua atividade política por esse tipo de articulação. Em qualquer congresso nacional ou assembleia constituinte teremos propostas descabidas ou radicais.
No caso da Constituinte chilena, a fase dos trabalhos iniciada no último dia 1º de fevereiro abrange 1.266 propostas. Dessas, 940 foram feitas por constituintes, 248 feitas por povos originários e 78 iniciativas populares. A Constituinte criou uma plataforma online em que cada cidadão poderia submeter até sete propostas. Propostas que tiveram mais de 15 mil assinaturas de ao menos quatro regiões até o início do mês serão apreciadas pelas comissões da Constituinte.
Todas essas 1.266 propostas serão analisadas pelas diferentes comissões da constituinte. Podem ser rejeitadas, modificadas, aglutinadas e aprovadas. Finalmente, caso aprovadas, quando forem ao voto do plenário, precisam ser aceitas por dois terços dos constituintes. Quinze assinaturas são menos de 10% de toda a Constituinte, são necessários 103 votos para que uma proposta entre no texto, justamente para evitar que propostas sem amplo consenso sejam contempladas.
A coluna falou disso em maio de 2021, no texto O início do fim do Chile de Pinochet. Na ocasião, o leitor viu que a direita e a centro-direita chilena não conseguirão um “veto automático” em questões como aborto de gestação. Ainda assim, o bloco de direita é o maior grupo político da constituinte, com os vários grupos de esquerda fragmentados menores em número, sem mencionar os independentes e as lideranças indígenas. É quase impossível uma proposta obscura de um pequeno grupo ambientalista ser aprovada.
Caricatura
Também é importante deixar claro para o leitor que, mesmo dentre as esquerdas chilenas, não há uma postura monolítica sobre as propostas para a constituinte, muito menos no tema das forças armadas. Isso é uma caricatura simplista e ideológica, fruto de um pensamento raso de achar que uma pessoa ou um grupo político ser de direita é igual a “apoio incondicional às forças armadas” e ser de esquerda é “contra as forças armadas”. Existem pessoas assim? Sem dúvida, mas essa não é a regra, tampouco deveria ser algo presente nos comentários políticos de profissionais.
Essa caricatura, infelizmente, é fruto das últimas décadas da política latino-americana, em que houve uma ideologização tanto de cidadãos perante uma instituição de Estado como as forças armadas quanto de integrantes dessas mesmas instituições. No Brasil, por exemplo, Ernesto Geisel afirmou que, quando os militares entraram na política, a política entrou nos quartéis. Décadas antes, o marechal José Pessoa defendia a necessidade de separação entre as duas esferas.
Talvez o melhor exemplo recente para ilustrar como essa clivagem é uma caricatura seja o dos mandatos presidenciais de Lula no Brasil. Enquanto muitos “alertavam” sobre um suposto “revanchismo” da esquerda brasileira contra as forças armadas, o que se viu foram alguns dos maiores projetos de modernização das forças armadas brasileiras, como o Programa de Desenvolvimento de Submarinos, de 2008, talvez o maior programa armamentista da história brasileira em valores corrigidos.
Saindo da caricatura, qual é a realidade chilena, então? A Constituição de 1980, da ditadura Pinochet, garante maiores poderes às forças armadas do que outras constituições. Isso foi parcialmente modificado pela reforma constitucional de 2005 e obviamente que o assunto voltou à pauta. Não apenas pela constituinte, mas também pelo fato de como o legado da ditadura Pinochet é um tópico ainda sensível no Chile. O que não quer dizer que exista unanimidade sobre como proceder.
Existem grupos políticos que defendem desde a manutenção das forças armadas como um capítulo próprio da Constituição até os que desejam sua regulação via leis ordinárias, como nos EUA, fora da Constituição. E existem propostas divergentes tanto na esquerda quanto na direita. Também são debatidas questões como a previdência dos militares, o papel e a composição do Conselho de Segurança Nacional, dentre outros. Também é discutida a polícia militar nacional, os Carabineros.
Inclusive, ao citarmos as 78 iniciativas populares que serão apreciadas pela Constituinte por terem recebido mais de 15 mil assinaturas, apenas uma trata das forças armadas. E defende justamente que o status atual seja mantido, com um capítulo separado na Constituição. A iniciativa de número 41.694, pelo grupo Nos Importan, pode ser lida na íntegra.
Contexto político interno e internacional
Em outras palavras, além da mentira clara e óbvia citada, o contexto político interno chileno não é de unanimidade e é mais complexo do que transmite uma caricatura que infantiliza o leitor. O cerne dos trabalhos estará, sem dúvidas, em fortalecer o comando civil e institucional das forças armadas, mas não há espaço para uma medida radical como “extinguir” os militares. No máximo, uma eventual desmilitarização dos Carabineros, que deixaram de ser parte das forças armadas recentemente, em 2011.
O espaço para uma medida como a extinção das forças armadas é ainda menor ao lembrarmos que o projeto de Constituição terá que ser aprovado em um referendo de saída, logo após uma eleição presidencial com comparecimento recorde e 44,1% dos votos para José Antonio Kast, de direita. Ou seja, uma constituição muito radical dificilmente seria aprovada. A caricatura também esconde como funciona o processo constituinte, não existem poderes absolutos na mão dos constituintes.
Nem do presidente eleito, Gabriel Boric, de esquerda radical, que, no último dia 27 de janeiro, encontrou-se com os três comandantes das forças chilenas. A futura ministra da defesa, Maya Fernández, neta de Salvador Allende, também esteve presente. Ela afirmou que o encontro “foi bom e apropriado, como acreditamos”. A futura ministra também declarou que “mais do que história, obviamente devemos pensar em termos sempre Forças Armadas para todos os chilenos”. Não soam palavras de alguma grande conspiração para abolir as forças armadas.
Finalmente, existe também o contexto político internacional do Chile. O país possui pendências fronteiriças históricas com todos os seus três vizinhos. Com a Argentina, a disputa é sobre o canal de Beagle, e os dois países quase foram à guerra em 1975. Recentemente, em setembro de 2021, os dois governos trocaram declarações ásperas sobre o tema. Ao norte, com o Peru e com a Bolívia, a discussão é sobre os territórios do Atacama conquistados pelo Chile no século XIX, o que já foi parar na Corte Internacional de Justiça.
No fim das contas, a mentira de dizer que o Chile vai abolir suas forças armadas, ou algo similar, não passa de uma caricatura que ignora, ou omite, os procedimentos constituintes chilenos, seu contexto político interno e o contexto internacional de suas fronteiras. Trata-se de manipular as pessoas para terem uma reação emocional e ideológica, projetando a mesma reação ao cenário político brasileiro, justamente em ano de eleições presidenciais. A informação e a noção da complexidade da realidade são mais desejáveis.
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