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Vinte e cinco pessoas morreram desde a tentativa de autogolpe do então presidente peruano Pedro Castillo, no último dia sete de dezembro. Se as ruas estão violentas, a política institucional está longe de estar estável. Na última segunda-feira, a presidente Dina Boluarte demitiu seu primeiro-ministro, iniciando um processo de reforma ministerial. A situação no Peru passa longe de ser culpa de um ou outro ator político, mas é uma crise sistêmica que, para ser solucionada, precisa de uma concertação enorme de esforços.
Seria fácil ou conveniente “fulanizar” a crise política peruana, achar que ela é culpa de uma pessoa ou de apenas um setor político. Antes de entrarmos em detalhes, os meros números contribuem para deixar claro como o sistema político peruano é falho e é ele que mergulha o país na crise sistêmica. Considerando os últimos dez anos, o país está no sétimo presidente. O último presidente peruano que terminou seu mandato foi Ollanta Humala, de esquerda social-democrata, em julho de 2016.
No ano seguinte, Humala foi preso por acusações de corrupção. Seu sucessor foi Pedro Pablo Kuczynski, de direita liberal, eleito. Ele renunciou em março de 2018, após denúncias de corrupção envolvendo a construtora brasileira Odebrecht, pressionado pelo congresso dominado pelo Fuerza Popular, da direita conservadora fujimorista, dirigido por Keiko Fujimori. Keiko Fujimori que ficou em segundo lugar nas três últimas eleições presidenciais e também foi presa por escândalos de corrupção envolvendo a mesma empresa brasileira.
Kuczynski foi sucedido por seu vice centrista, Martín Vizcarra, que governou por dois anos e meio. Seu governo foi marcado pela continuidade da queda de braço entre Executivo e Legislativo controlado pelo fujimorismo, com uma crise constitucional envolvendo a nomeação dos juízes para a Corte Constitucional, terminando na dissolução do Congresso e uma nova eleição legislativa em janeiro de 2020. A segunda vice-presidente Mercedes Aráoz renunciou ao cargo na ocasião.
Queda de braço entre Executivo e Legislativo
Em novembro de 2020, Vizcarra foi alvo da vingança do Congresso e sofreu impeachment por “incapacidade moral”, sem crime especificado. Como Aráoz renunciou, Vizcarra foi sucedido por Manuel Merino, presidente do Congresso, uma figura do que é chamado de “centrão” no Brasil, os políticos fisiologistas sem bandeiras definidas que não o próprio benefício. Após protestos com duas mortes, Merino renunciou depois de apenas cinco dias no cargo, sucedido por Francisco Sagasti.
O social-democrata não foi escolhido por suas ideias políticas, mas por ser o mais velho parlamentar, como um solução emergencial de consenso, um “decano”. Seu governo de oito meses tinha uma única tarefa, supervisionar as eleições presidenciais que elegeram Pedro Castillo, do partido de esquerda radical rural Peru Libre, que une bandeiras da esquerda radical peruana, como nacionalização dos recursos minerais, mas renega pautas como a legalização do aborto de gestação ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A diferença de votos entre Castillo e Keiko Fujimori no segundo turno foi de apenas 44.263 votos, com uma participação popular de 74% do eleitorado. Cada candidato contava com um núcleo de eleitores engajados, mas a maior parte dos eleitores votou motivada pela rejeição. Ou contra Castillo, cuja imagem era associada ao grupo armado comunista Sendero Luminoso, ou contra Fujimori, herdeira política do ditador e corrupto condenado. Desde o início, Castillo estava numa situação difícil.
Além da pequena margem de votos, o Congresso é controlado pela direita conservadora. Castillo foi abandonado por seu próprio partido e decidiu “cair atirando” em uma tentativa de autogolpe, mandando dissolver o Congresso, decretando um estado de exceção e uma convocação de uma constituinte. O Legislativo ignorou o decreto e destituiu Castillo, que foi preso. Quem assumiu foi sua vice-presidente, Dina Boluarte, que também foi retirada dos quadros do Peru Libre e está tão isolada quanto seu antecessor.
Desenho institucional
A grande questão peruana está no fato de que sua política institucional é desenhada partindo da premissa de que Executivo e Legislativo não vão apenas fiscalizar um ao outro, mas estarão em pé de guerra. A constituição do país foi outorgada em dezembro de 1993, fruto do regime de Fujimori, e concentra poderes no presidente. Por exemplo, o presidente pode dissolver o Congresso após duas derrotas de desconfiança na casa. A redemocratização não trouxe uma nova Carta, mas apenas reformas.
Na intenção de fortalecer o Legislativo, criou-se um cambalacho paralelo em que o Congresso pode praticamente travar o país e o governo. O leitor talvez se lembre da expressão “pauta bomba”, quando Eduardo Cunha presidia a Câmara de Deputados brasileira. É como um constante clima de “pautas bomba”, que afetou presidentes de diferentes espectros políticos nas mãos de um Congresso ou pulverizado ou controlado pelo fujimorismo, que tenta retornar ao poder para garantir a própria impunidade.
Talvez o melhor exemplo disso para ilustrar ao leitor seja o fato de que o presidente peruano precisa passar pelo Congresso para alterar seu gabinete, que é chefiado pelo primeiro-ministro, um ministro-chefe. Nos mesmos dez anos em que o Peru teve sete presidentes, o país está no seu décimo oitavo primeiro-ministro. Uma média de menos de sete meses para cada governo, tornando qualquer administração de um país absolutamente inviável. Boluarte já irá para seu segundo gabinete.
Não se trata de tirar a responsabilidade dos atores políticos, como do comportamento obstrucionista de Keiko Fujimori, da corrupção de Kuczynski ou de Castillo, também investigado por corrupção, mas de constatar que existe também um problema sistêmico que não apenas proporciona, mas também causa a instabilidade peruana. Lidar com isso não é simples. Em agosto de 2021, falamos aqui em nosso espaço que os planos de uma constituinte por Castillo eram complicados, por uma questão de legitimidade.
Ao mesmo tempo, a herança de uma constituição fruto de um período autoritário e o posterior cambalacho legal são insustentáveis. É necessário um esforço nacional e a concertação de atores políticos para criar um quadro institucional que seja democrático, representativo e funcional. Enquanto isso não acontecer, o Peru ficará reduzido a duas possibilidades: uma instabilidade perene, com governos entrando e saindo, ou uma aventura autoritária de ocasião.