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Fotografias de Steve McCurry em exposição retrospectiva de sua carreira em Madri, Espanha, 17 de novembro. O retrato da menina afegã Sharbat Gula, de 1984, é a capa mais icônica da história da revista National Geographic
Fotografias de Steve McCurry em exposição retrospectiva de sua carreira em Madri, Espanha, 17 de novembro. O retrato da menina afegã Sharbat Gula, de 1984, é a capa mais icônica da história da revista National Geographic| Foto: EFE/Luca Piergiovanni

O governo italiano anunciou nessa última quinta-feira que concedeu o status de refugiada à afegã Sharbat Gula, de 49 anos de idade. O nome pode não dizer nada ao leitor, mas você já a viu. Mais de uma vez. Lembra da menina afegã de olhos verdes que foi fotografada em dezembro de 1984 e estampou incontáveis capas de revistas e campanhas para refugiados? É ela, cuja trajetória é pouquíssimo contada, especialmente a desfaçatez do tratamento dispensado à ela até hoje, principalmente por pessoas que ganharam muito dinheiro com sua imagem.

Como sempre, comecemos pelos fatos. O Afeganistão entrou em guerra civil em 1978, agravada, no ano seguinte, pela intervenção soviética no país. Como consequência, milhões de afegãos buscaram refúgio nos países vizinhos, especialmente no Irã e no Paquistão. Como explicado no texto Uma característica do Talibã frequentemente ignorada, a principal etnia afegã é a dos pashtuns (ou pastós, no português de Portugal) e cerca de 40 milhões de pessoas dessa etnia vivem no Paquistão. É um grupo comum aos dois países, contribuindo para esse fluxo migratório.

Foram criados dezenas de campos de refugiados afegãos em território paquistanês. Um deles foi o de Nasir Bagh, que chegou a comportar 100 mil pessoas. Em dezembro de 1984, Steve McCurry, fotógrafo da National Geographic Society, estava nesse campo. Segundo ele, ao ouvir gargalhadas vindas de uma tenda onde funcionava uma escola improvisada para meninas, ele se aproximou. Se deparou com a menina pashtun de olhos verdes, então com doze para treze anos, e tirou a fotografia que se tornou uma referência mundial, um suposto símbolo das mazelas que meninas e mulheres sofrem no “Terceiro Mundo”, especialmente no Afeganistão.

Capas e prêmios

A foto foi capa de diversas revistas em meados dos anos 1980 e vencedora de diversos prêmios. Chegou a ser considerada a “foto mais icônica” da História da National Geographic. Por causa da origem da menina, a foto explodiu em popularidade novamente no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Ela seria um símbolo de todas as mulheres que sofriam nas mãos do Talibã e, após o Onze de Setembro, de todas as meninas que seriam libertas do jugo do grupo extremista após a intervenção autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU. Nesse contexto que, em janeiro de 2002, uma equipe da revista realizou a primeira tentativa de localizar a agora mulher de olhos verdes.

Ela foi localizada após muitas tentativas. Vivia na região montanhosa de Tora Bora no Afeganistão, para onde retornou em 1992. Sua mãe havia morrido de apendicite e seu pai estava envolvido no conflito. Com a avó e irmãos, fugiram para o Paquistão. Ela se casou em 1985, aos treze anos de idade, com o padeiro Rahmat Gula. Em 2002, além do marido, vivia com as três filhas do casal. Ela passou pelo luto de perder uma filha, que morreu pouco depois do nascimento. “Não vingou” diriam os mais antigos. Foi em 2002 que ela viu, pela primeira vez, sua fotografia mundialmente famosa e que seu nome foi levado ao mundo: Sharbat Gula. A menção ao nome dela apenas agora não é uma opção estilística. McCurry, o fotógrafo, não havia se dado ao trabalho de registrar o nome da menina.

O encontro de 2002 rendeu um documentário e mais atração midiática. No programa, o fato de usarem reconhecimento pela íris ocular recebe quase tanta atenção quanto ela em si. Retrata-se uma epopeia hollywoodiana para encontrarem um grande “tesouro perdido”. O documentário mente afirmando que os pais dela morreram “num ataque”. Depois disso? Aparentemente nada, já que ela voltou à mídia apenas no final de outubro de 2016, quando ela foi presa pela polícia paquistanesa sob a acusação de falsificar documentos para viver no país. Ela foi deportada para o Afeganistão e, em 2017, talvez tenha sido a primeira vez que Gula recebeu algo mais que o reconhecimento de sua imagem ou alguma reverência. 

O governo afegão cedeu um apartamento para ela e sua família em Cabul. Naquele momento, além de ter mais um filho de seu casamento, ela estava viúva. Seu marido faleceu em 2012. Além da residência, o governo afegão a concedeu um auxílio para gastos médicos e de alimentação. Com a retomada do Talibã, em 2021, entretanto, ela teve que fugir novamente. Segundo o gabinete do premiê italiano, a afegã solicitou refúgio e seu traslado foi realizado tanto por autoridades europeias quanto por organizações de voluntários que operam no Afeganistão. Mario Draghi afirmou que ela "simboliza as vicissitudes e o capítulo de conflitos da história que o Afeganistão e seu povo passaram".

Questões éticas

Depois desses fatos, veremos “outro lado” dessa icônica fotografia. A imagem de Sharbat Gula foi utilizada para propósitos nobres? Também, isso não pode ser negado. Apenas o fundo criado pela revista levantou mais de um milhão de dólares para crianças afegãs. Na maioria das vezes, entretanto, sua imagem foi apenas um símbolo de uma suposta solidariedade passageira e meio cínica. Principalmente, rendeu muito dinheiro, para muita gente, menos ela, e o fotógrafo Tony Northrup já levantou diversos questionamentos éticos sobre a foto. Principalmente, ele ouviu a própria Sharbat Gula. Ela conta que McCurry invadiu a aula e tentou forçar ela a tirar as mãos da frente do rosto.

Depois que a professora interferiu para acabar com o “mal entendido”, ele a tirou da tenda onde ocorriam as aulas e a colocou numa posição “melhor iluminada”. McCurry também teria manipulado a pose dela, tocando na menina. Segundo Northrup, a legenda original da foto, que dizia que “os olhos assombrados mostram o medo da guerra dessa refugiada afegã”, era falsa. O medo da menina era de McCurry, que sequer deveria ter entrado numa escola apenas para meninas. Peço ao leitor que imagine uma menina de doze anos forçada a interagir com um homem adulto estranho, sem consentimento ou sequer consulta a um adulto responsável. Ela é tirada de seu ambiente natural, a escola, e levada a um local onde fica sozinha com esse adulto.

McCurry não perguntou o nome dela, não pediu autorização para fotografá-la e não pediu o consentimento de um adulto responsável, como a avó da menina, para publicar as fotos. E ganhou rios de dinheiro com isso. Em uma entrevista de 2015, ao jornalista Robert Chilton, McCurry disse que “poderia ter se aposentado” após o Onze de setembro. Uma impressão “de altíssima qualidade belas artes” da fotografia no site oficial do fotógrafo pode sair por US$ 18 mil, cerca de R$ 100 mil hoje. Sharbat Gula não recebeu nenhum centavo disso, sequer teve seu nome registrado, repita-se. É inimaginável achar que essa situação ocorreria com uma menina fotografada nos EUA em meio a poeira do Onze de Setembro ou a destruição de um furacão.

Em entrevistas ela já disse que a foto a deixou “indignada”, que não é “uma boa lembrança” e que a colocou em perigo frente aos “que não acham que mulheres devem ser fotografadas”. Em outras palavras, o Talibã. McCurry se defende afirmando que tentou localizá-la nos anos 1990 e que, em 2002, ela teria recebido uma compensação em dinheiro. Por outro lado, em mais de uma entrevista, ele mesmo reconhece que sabia que a publicação da foto poderia colocar a menina em perigo. Ele muito provavelmente é consciente de todos os problemas éticos do trabalho que estabeleceu a sua carreira e a sua vida, ao menos financeiramente falando.

O governo italiano não tem culpa de nada disso, é claro. Está fazendo uma pequena, mas valiosa parte, em preservar a vida e a integridade física da afegã de olhos verdes. Na verdade, está fazendo o que deveria ter sido feito há muito tempo atrás. Por outras pessoas. É uma desfaçatez a história dessa fotografia e o fato de que o destino dessa mulher não tenha colhido uma parcela dos frutos gerados pela imagem dela. É difícil ver alguma diferença entre esse tratamento e o de fotografias de animais na natureza. Que ela, aos 49 anos de idade, consiga ver um pouco mais do alcance e do impacto que ela teve e, quem sabe, ter uma vida mais pacífica.

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