“Nossas diferenças são tão irreconciliáveis que não conseguimos encontrar um meio-termo para seguir em frente, e isso é realmente muito triste”. Essas foram as palavras de um arquiteto chileno a uma reportagem que cobriu a repercussão do voto no mais recente referendo constitucional do nosso país quase vizinho. Mais uma vez, o Chile rejeitou uma nova constituição. E, ao menos por enquanto, pela última vez, em uma possível jogada política do presidente Gabriel Boric.
Como sempre, primeiro, vamos aos números. Cerca de treze milhões de chilenos compareceram às urnas, 84,4% do eleitorado total. Desses, 55,7% rejeitaram a nova proposta de texto constitucional, pouco menos de sete milhões de pessoas. 44,2% votaram a favor, quase cinco milhões e meio de eleitores. Outras 600 mil pessoas votaram em branco ou nulo. Assim como no referendo anterior, de setembro de 2022, o voto foi obrigatório, ao contrário das eleições presidenciais.
Isso explica parcialmente a diferença de eleitorado entre as eleições presidenciais e a dos referendos. Enquanto pouco mais de oito milhões de chilenos participaram do segundo turno das eleições presidenciais de 2021, mais de treze milhões votaram nos referendos. E, em ambos os referendos constitucionais, tivemos uma disputa acirrada de narrativas. Importante deixar claro que, nesta coluna, vamos nos concentrar no atual voto, evitando sermos repetitivos quanto ao contexto político e histórico da nova constituição.
O processo político de uma nova constituição chilena já foi abordado aqui em nosso espaço diversas vezes. A mais recente talvez tenha sido justamente um ano atrás, na coluna “A população chilena deu um claro recado nas urnas”. Retornando ao referendo, o que explica as duas propostas de constituição terem sido rejeitadas? Em 2021, com 61,8% dos votos, cerca de um milhão de votos a mais do que agora, diga-se. A frase que citamos, de um eleitor chileno, é um bom ponto de partida.
Boric foi derrotado no ano passado e, nesse ano, se contentou em evitar levar uma goleada.
A proposta de 2021 era vista como demasiado à esquerda, resultando em uma grande mobilização da direita para barrar o texto. Questões como a quantidade de representantes indígenas e a proposta, fracassada, de utilizar a nomenclatura de “Estado plurinacional”, tal como na Bolívia, mobilizaram setores mais nacionalistas. Aspectos como o aborto de gestação mobilizaram conservadores, enquanto eventuais reformas visando um Estado de bem-estar social mobilizaram os liberais.
Hoje, dois anos depois, está muito claro que, naquele momento, a esquerda chilena deu um “passo maior do que a perna”. O ímpeto por reforma e os protestos durante o governo Piñera abriram caminho para a eleição de uma constituinte com maioria de representantes da esquerda, mas isso não era uma carta em branco, como visto no referendo. O fato de o voto ter ocorrido depois de seis meses de governo do socialista Gabriel Boric, criticado e com baixa aprovação, também colaborou para o rechaço do texto.
Como mencionamos no texto de um ano atrás, a grande mudança no processo constitucional chileno foi a de que a direita se tornou a “dona da bola”. O segundo processo constituinte foi mais conciso, com o texto proposto redigido por uma Comissão de Especialistas formada por vinte e quatro pessoas e por cinquenta conselheiros constitucionais eleitos por voto direto. Em comparação, a Convenção Constituinte anterior teve 155 membros.
A maioria do novo Conselho Constitucional foi formada por representantes dos partidos da direita. A nova proposta de texto, em alguns aspectos, era mais conservadora do que a atual constituição. A Carta, embora seja de 1980, durante a ditadura Pinochet, já foi reformada e emendada diversas vezes. Ou seja, novamente, existia uma proposta de texto constitucional cujo tom agradava uma parte do eleitorado chileno, mas desagradava profundamente a outra parte.
Consequentemente, a maioria dos partidos e do eleitorado rechaçou a nova proposta. A principal força pela proposta rejeitada no último domingo é do Partido Republicano, que elegeu sozinho quase metade do Conselho Constitucional. Existe outro aspecto que também precisa ser citado: quando uma proposta constitucional é vista como marcadamente de um espectro político, afasta eleitores moderados de centro.
Esse eleitor pode até concordar algumas pautas, mas não se identifica com outras e, então, vota contra. Isso aconteceu em ambos os referendos. Após o voto, o presidente Gabriel Boric disse que, enquanto durar seu mandato, não haverá mais uma proposta constitucional. Em teoria, o mandato para alterar a constituição continua válido, aprovado pelo referendo de outubro de 2020. Boric, ao fazer isso, alegou que as forças políticas do país não estão conseguindo entrar em um consenso.
Justo, e ele tem parcialmente razão. Outra questão, entretanto, é que a direita continua “dona da bola”, e Boric sabe disso. Manter o processo constituinte seria dar a chance para uma constituição mais conservadora, então, ele freia o processo. A direita, mesmo derrotada nesse domingo, ainda está satisfeita, com a manutenção da Carta de 1980, da ditadura Pinochet. Mantendo a analogia com futebol, Boric foi derrotado no ano passado e, nesse ano, se contentou em evitar levar uma goleada.
O mais recente voto chileno precisa ser visto pela esquerda chilena como uma lição, a de que eles precisarão se unir caso não queiram perder para Kast em 2025. Boric não será candidato, primeiro pois não há reeleição no Chile, segundo pois, hoje, ele não seria eleito sequer para síndico. Em 2021, a esquerda se dividiu em três candidaturas presidenciais no primeiro turno, com o fim da vitoriosa Concertación. Perceberam o erro no segundo turno. Perderam no referendo de 2022. E em 2025?
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