A Espanha deu uma guinada ao centro no último final de semana, se é que essa expressão existe. O parlamento espanhol estava travado desde 2015, com Mariano Rajoy, do Partido Popular, de centro-direita com algumas bandeiras conservadoras, governando com gabinetes de minoria. Em junho de 2018 uma mistura de crise política, com a independência da Catalunha, somada ao escândalo de corrupção que denunciou que o PP mantinha um “caixa 2 permanente” desde 1989, derrubou o governo Rajoy. Chega ao poder Pedro Sánchez, do Partido Socialista Trabalhista Espanhol (PSOE), o outro partido tradicional do país, de centro-esquerda.
O parlamento espanhol, entretanto, continuava travado, sem maiorias. A crise da Catalunha ainda ressoava e a postura do PSOE perante os independistas fraturou sua coalizão, afastando os dois partidos regionais. Isso fez com que o governo fosse derrotado no voto do orçamento da Espanha. Sem muitas opções, Sánchez decidiu dissolver o parlamento e antecipar as eleições em um mês, evitando então semanas de um governo inerte e com pouca autoridade. Isso provavelmente beneficiaria o Vox, o novo partido de extrema-direita que surgiu na Espanha e mostrou suas credenciais ao conquistar cadeiras na Andaluzia.
Posições na Espanha
Antecipo eventuais leitores queixosos e explico o critério usado para a definição anterior. Um problema em discussões na internet é a formatação do que seriam esquerda e direita como se questões universais e imutáveis. Por exemplo, existem discussões e pautas que são regionais e não existem ou são desconhecidas em outros países. Além disso, algumas questões desaparecem ou mudam com o tempo; a origem dos termos está na Revolução Francesa de 1789, e deve ser improvável que hoje existam muitos ultraroyaliste, os que rejeitavam as instituições liberais como um parlamento ou um judiciário independente em prol de um monarca absoluto de Direito Divino.
Ou seja, as pautas que norteiam esse debate variam com seu contexto histórico e também são temperadas por variações regionais. Na Espanha, além da economia, o eixo esquerda-direita gira em torno de três temas principais. A instituição da Coroa, com o republicanismo historicamente associado à esquerda espanhola; as relações entre o Estado e a Igreja, e qual a autoridade dessa em relação aos costumes e pautas sociais, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo; e a centralização da autoridade estatal, o Castelhanismo, em detrimento das autoridades e, principalmente, das identidades regionais. A ideia de que existe Uma Espanha; note a maiúscula, a Espanha não seria um coletivo de regiões, mas Castella.
No caso do Vox, trata-se de partido extremamente tradicionalista, apologista do Franquismo; e ninguém há de suspeitar que Franco e seu fascismo clerical compunham uma ideologia de extrema-direita. O Vox restaura as ideias franquistas de que existe uma “personificação” do que é ser espanhol na coroa. É tradicionalista e defende que a vida social não pode contrariar os preceitos religiosos católicos. Finalmente, e principalmente, ele é extremamente chauvinista na ideia de que existe uma identidade espanhola que é sinônimo da identidade castelhana. São centralizadores e defendem até mesmo o fim das regiões autônomas; não apenas contra eventuais independências, mas contra a autonomia regional.
O citado PP, de centro-direita, e o Ciudadanos, de direita, são ambos partidos pró-Madri e centralistas, mas são a favor das autonomias regionais. O Ciudadanos, inclusive, um partido de pautas conservadoras, nasceu na Catalunha e abraça a ideia de um país Espanha, sem, entretanto, abraçar o nacionalismo franquista do Vox. “Cataluña es mi patria, España es mi país y Europa es nuestro futuro”, diz o fundador do partido, que também é pró-Europa, ao contrário de alguns dos movimentos da direita populista europeia. Ambos os partidos possuem filiais locais. No País Basco, por exemplo, juntam suas pautas de direita com as pautas locais de autonomia e de identidade. Não o Vox. O Vox é o franquismo que quer proibir o idioma basco de ser ensinado e que vê com bons olhos a imposição do castelhano.
Voto útil e guinada
Feita essa contextualização, o resultado das eleições mostrou que a esquerda espanhola veio ao centro, especialmente com o “voto útil” de eleitores do Podemos, de esquerda, no PSOE, temendo uma ascensão do Vox. Já a direita também deu uma guinada, nesse caso para a ponta do espectro político, enfraquecendo ainda mais o PP, pela incompetência, pela corrupção e pelas bandeiras mais claras defendidas pelo Ciudadanos e pelo Vox. Isso fica evidente quando se olha para as mudanças percentuais do eleitorado em comparação ao parlamento que estava empossado.
O comparecimento foi de pouco mais de 26 milhões de eleitores, 75,8% do eleitorado. O PSOE, o Podemos e a Esquerda Republicana Catalã (ERC) ficaram, respectivamente, com 28,7%, 14,3% e 3,9% dos votos. O PSOE foi o grande vencedor, em primeiro lugar, com a prerrogativa de manter o governo, agora com maior base de apoio parlamentar. Na eleição anterior, em 2016, os números dos três partidos foram, respectivamente, de 22,6%, 21,2% e 2,7%. Um total, em 2019, de 46,9% para os três principais partidos de esquerda, e de 46,5% em 2016. Quase a mesma proporção, então, como o PSOE foi o vencedor?
A esquerda espanhola não teve mais votos, os seus votos migraram do Podemos para o ERC e, principalmente, para o PSOE. No sistema de proporção parlamentar espanhol cada circunscrição eleitoral possui dois assentos mais um número determinado pela proporção da população. Como o PSOE foi o principal vencedor na maioria das circunscrições, ele levou as cadeiras de sua proporção mais o “bônus” de onde venceu. Esse voto útil permitiu que o PSOE, embora com apenas 6% a mais de votos, ganhasse mais 38 cadeiras, para um total de 123. Com as 42 cadeiras do Podemos e as 15 do ERC, o governo está garantido.
Na direita, o fenômeno foi na direção contrária, enfraquecendo o centro. O PP, das 137 cadeiras que tinha, foi reduzido a 66, com 15,7% dos votos, perdendo quase dezesseis pontos percentuais do eleitorado. Esses eleitores migraram para o Ciudadanos, que foi de 32 para 57 assentos na câmara, e para o Vox. Em sua primeira eleição após a vitória regional, o partido teve 10% dos votos, conquistando 24 assentos. Completam o parlamento o catalão Junts, com sete assentos, os bascos PNV e EH Bildu, com seis e quatro assentos respectivamente, dois assentos para partidos canários, dois para a filial galega do Ciudadanos, um para o Compromis valenciano e um para o PRC da Cantábria.
Senado e desafios
A Espanha é um parlamentarismo bicameral, com as eleições para o Senado baseadas no voto individual, não na lista partidária. Isso faz com que personalidades e partidos tradicionais sejam favorecidos pelas regras eleitorais. Nele o PSOE fica com 141 cadeiras e o PP com 73, os dois habituais gigantes da política espanhola. As outras 52 cadeiras foram pulverizadas em onze partidos, com o ERC com treze; o Vox mantém apenas uma, pela Andaluzia. Tudo indica que o PSOE conseguirá governabilidade em ambas as casas, embora o Senado não seja essencial para o poder executivo na Espanha.
Foi a terceira eleição geral espanhola em quarenta meses. O principal desafio de Sánchez e do PSOE é manter um governo estável, que consiga lidar com os problemas econômicos e sociais do país sem uma fraqueza política a cada seis meses. Depois, o dia 26 de Maio, com as eleições regionais e para o parlamento europeu, que podem consolidar sua força política ou sinalizar que as coisas não serão tão simples assim. Finalmente, tentar fazer com que essa consolidação renda frutos internacionais, com mais protagonismo na Europa e uma posição de diálogo na Venezuela. Vencer a eleição foi o primeiro passo.
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