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No último dia 21 de setembro, Vladimir Putin anunciou uma “mobilização parcial” das forças armadas russas para a “operação militar especial” na Ucrânia. O discurso foi transmitido na manhã de Moscou, madrugada no Brasil, e estava previsto para o dia anterior, no horário nobre noturno. As implicações e, principalmente, os resultados do pronunciamento explicam a mudança de horário, para um momento mais discreto.
Segundo Putin, a decisão é “totalmente adequada às ameaças que enfrentamos. Nomeadamente, para proteger a nossa pátria, a sua soberania e integridade territorial, e para garantir a segurança do nosso povo e do nosso povo nos territórios libertados.”. Para ele, “hoje nossas forças armadas estão operando em uma linha de frente que ultrapassa mil quilômetros, opondo-se não apenas às formações neonazistas, mas a toda a máquina militar do Ocidente coletivo”.
Para lutar a guerra, então, seria necessária a “mobilização parcial”, na qual “apenas os cidadãos que estão atualmente nas reservas e, sobretudo, aqueles que serviram nas Forças Armadas, possuem habilidades militares e experiência relevante. Somente eles estarão sujeitos ao recrutamento”. Já em relação ao Ocidente e à OTAN, Putin afirmou que a Rússia usaria todos os meios necessários para se defender, colocando explicitamente uma escalada nuclear como uma opção na mesa.
Mobilização e referendos
A questão da mobilização foi tratada aqui em nosso espaço apenas alguns dias atrás, em coluna do dia 13 de setembro. A Rússia precisaria poder mobilizar mais de seu poderio militar para poder retomar superioridade contra a Ucrânia, que tem a vantagem de lutar uma guerra defensiva, e recebe constante fluxo de equipamentos bélicos modernos do Ocidente.
Além dos reveses sofridos pela Rússia na guerra na Ucrânia, outras crises e conflitos congelados em que a Rússia está envolvida, como no Cáucaso, tornam ainda mais imperativa a necessidade russa de mobilizar mais soldados. Isso é necessário para compensar o fato de que a Rússia não pode simplesmente retirar seus soldados atualmente em outras regiões. Hoje, apenas soldados profissionais servem na "operação militar especial", com altos índices de evasão e de recusa.
Na véspera do discurso, inclusive, foram aprovadas leis mais rígidas para deserção e recusa em ir ao front para lidar com esse problema. Outro tema presente no discurso de Putin foi o apoio aos referendos separatistas planejados em quatro oblasts ucranianos ocupados, Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia. Os referendos seriam para votar uma secessão da Ucrânia e eventual pedido de adesão à Federação Russa.
Esse foi o processo que ocorreu em 2014, quando da anexação da Crimeia, que, via a consulta popular, declarou formalmente independência e, posteriormente, solicitou a adesão à Federação Russa. Para o governo russo, isso dá legitimidade popular ao processo. Para os críticos, o voto foi uma farsa ilegal feita sob ocupação. O argumento russo é de que a independência de Kosovo abriu esse precedente.
As autoridades ucranianas já afirmaram que não vão reconhecer esses referendos e uma eventual formalização da anexação territorial poderia ter duas implicações. Em relação ao processo de paz, o reconhecimento do voto poderia ser colocado na mesa como uma exigência russa. Ou, ao menos, servir de barganha. Já em termos militares, os referendos poderiam implicar que ataques contra esses territórios seriam vistos como ataques contra o Estado russo. De acordo com a constituição russa, é necessário que o Estado esteja sob ameaça para que o uso de armamento nuclear seja justificado, por exemplo.
Reação popular
Após o discurso de Putin foi a vez do ministro da Defesa, Sergei Shoigu, se pronunciar, detalhando o que seria a “mobilização parcial”. O intuito é de arregimentar trezentos mil homens, com regiões da Rússia precisando cumprir determinadas cotas. Supostamente, algumas categorias serão isentas, como jovens atualmente em universidades. O mecanismo de “cotas regionais” serve ao propósito de focar o recrutamento em regiões mais afastadas e com minorias não-russas.
Por exemplo, um proporcionalmente maior recrutamento de chechenos e daguestaneses. Isso diminuiu o recrutamento de russos étnicos em grandes centros, como Moscou, locais mais suscetíveis a protestos. Também enfraquece regiões que poderiam ser, elas mesmas, focos de tensão. No caso das duas regiões citadas no Cáucaso, o separatismo é sempre um risco. Finalmente, são regiões com menos elos culturais e históricos com a Ucrânia.
Isso é algo que também já explicamos aqui em nosso espaço. O fato é que a maioria dos russos não vê os ucranianos como inimigos e não apoia a guerra. Não tem interesse nenhum em ir morrer numa guerra que não vêem sentido, contra alguém que não acreditam que seja um inimigo. Até a retórica de luta contra grupos neonazistas perdeu força nos últimos meses, mesmo dentre os grupos mais nacionalistas. Nessa semana, também, por exemplo, Rússia e Ucrânia, mediados pela Turquia, realizaram uma troca de prisioneiros que envolveu mais de cem integrantes do infame batalhão Azov.
E tudo isso pode ser visto na reação ao pronunciamento de Putin. Manifestações de rua, com milhares de presos. Vôos lotados para os poucos países que ainda aceitam turistas russos. Engarrafamento nas fronteiras terrestres com Finlândia, Mongólia e Cazaquistão. O russo médio não está interessado nessa guerra, muito diferente do ucraniano, motivado por ver o conflito como uma guerra pela sobrevivência.
Os reveses militares russos dos últimos meses afetam não apenas a moral da tropa, mas também o interesse popular no conflito. Mesmo sob forte censura, está muito claro que a situação não é favorável. Fere ainda mais a imagem do governo um episódio como o que envolveu o filho do porta-voz do Kremlin. Um programa de televisão fez uma “pegadinha” com ele, se passando por um recrutador, e o rapaz disse, em rede nacional, que resolveria o seu serviço militar “por outros meios”.
Boa parte dos russos hoje sabe que a guerra não será lutada pelo filho dos poderosos, com ou sem mobilização, seja geral ou parcial. Apenas a mobilização não vai resolver os problemas da Rússia, ela precisaria ser parte de uma estratégia mais ampla de como encarar a guerra. Da maneira como foi feita, incluindo a mudança de horário do anúncio, pareceu mais desespero e um governo acuado.
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