A Coreia do Norte pode ter dado um passo desastrado na última semana. A estratégia norte-coreana já foi explicada aqui anteriormente, em detalhes. Em suma, a ditadura de Pyongyang pretende usar o desenvolvimento de seu arsenal nuclear somado aos mísseis balísticos como forma de barganha por abertura econômica, garantias políticas e fóruns de diálogo com o governo de Seul.
A última semana começou promissora, nesse sentido. O presidente dos EUA, Donald Trump, falou publicamente sobre uma “bela carta” de três páginas que recebeu de Kim Jong-un. Ela conteria um “pequeno pedido de desculpas” sobre os mais recentes testes de mísseis de curto alcance; sim, o termo “pequeno” foi palavra de Trump. Além disso, expressava o desejo de Kim de se encontrar, assim que possível, com Trump.
A substância da carta, entretanto, pelas palavras de Trump, era justamente algo que endossa a estratégia norte-coreana, explicada aqui tem mais de ano e, então, tida como um pensamento “anti-Trump”, ou algo do tipo. Os lançamentos de mísseis norte-coreanos seriam interrompidos quando os exercícios militares anuais conjuntos entre EUA e Coreia do Sul acabassem.
Mais ainda, o próprio Trump chamou tais exercícios de “ridículos e caros”; em outras palavras, Trump expressou uma perspectiva congruente à da Coreia do Norte, embora por razões diferentes. E Trump encerrou seus comentários afirmando que uma “Coreia do Norte desnuclearizada” seria um dos países mais bem sucedidos de todo o mundo. Tudo promissor para um anúncio de novas conversas ou algo do tipo.
Na sexta-feira, dia 16, o clima esfriou. Bastante. A Coreia do Norte testou mais dois mísseis balísticos de curto alcance. Junto com eles, uma declaração muito forte. “Nesse momento, a Coreia do Sul continua seus exercícios militares e ousa falar em um regime pacífico ou economia pacífica.” Seguem. “Não temos mais nada a conversar com as autoridades sul-coreanas e não temos desejo de sentar com eles novamente”.
O peso das palavras, entretanto, foi direcionado ao presidente sul-coreano, Moon Jae-in. “Questionamos até se seu raciocínio está saudável quando ele fala de “conversas” entre Norte e Sul enquanto ensaia cenários de guerra que planejam destruir a maior parte de nossos exércitos em noventa dias”. Sobraram adjetivos: “sem vergonha”, “descarado” e um homem “tomado pelo medo”, um suposto covarde que não banca suas palavras.
O momento para essas declarações é péssimo por dois motivos. Primeiro, o dia. Ambas as Coreias celebram, no dia 15 de Agosto, o Dia da Libertação, a rendição das forças armadas japonesas na península, após décadas de domínio iniciado em 1876, com a anexação formal em 1910. Mesmo após setenta anos da nação coreana separada em dois Estados, o repúdio ao domínio japonês e a exigência por reparações é algo que os une.
Ainda mais, nas últimas semanas a Coreia do Sul e o Japão entraram em distensão, quando Tóquio removeu a república coreana da sua lista de parceiros preferenciais de exportação, impedindo a compra de alguns materiais e componentes estratégicos. O que inclui peças para a indústria de tecnologia, como telefones celulares e televisores, o que prejudica frontalmente a indústria sul-coreana.
Os motivos para essa rota de colisão foram dois. Primeiro, uma reação japonesa às exigências e protestos sul-coreanos por indenizações pela exploração de trabalhadores coreanos e o estupro sistemático de mulheres coreanas por décadas. Ao contrário do que ocorreu entre a Alemanha e o Estado de Israel, por exemplo, a discussão sobre indenizações no Extremo Oriente foi eclipsada pela Guerra Fria.
Em nome de uma unidade contra a ameaça socialista, com Coreia do Norte, China e União Soviética literalmente na vizinhança, as relações entre sul-coreanos e Japão foram rapidamente varridas para debaixo do guarda-chuva dos EUA. O período foi marcado pela pesada presença militar dos EUA na região e por ditaduras militares anticomunistas no poder em Seul. Com a queda do muro, o tema e o ressentimento retornaram.
O segundo motivo é que o Japão alega que a Coreia do Sul não mais cumpre os mais altos requisitos de segurança. Para bom entendedor, o recado é claro. As empresas sul-coreanas podem falar em investir no norte, em retomar a cooperação econômica na fronteira, como em Kaesong, até em estabelecer canais de diálogo formais com Pyongyang. Só que fará isso sem contar com produtos japoneses, que podem “vazar” rumo ao norte.
Ou seja, em uma semana marcada pelo antagonismo entre a Coreia do Sul e o Japão, o inimigo histórico em comum com o norte, o regime norte-coreano opta por ir na contramão da unidade coreana. Fechar as portas para o diálogo e personalizar as críticas e comentários pesados na figura de Moon Jae-in. E esse foi outro erro que torna péssimo o momento para essas declarações.
Moon é a melhor opção para o diálogo intercoreano em décadas, e talvez o seja por ainda muito tempo. A sua postura aberta à normalização de relações é de uma intensidade extremamente incomum, ainda mais em um vencedor das eleições sul-coreanas. E isso não é apenas por motivos políticos, já que um dos elementos da clivagem política na Coreia do Sul é entre os pró-diálogo e os linha-dura.
Também estão envolvidas questões pessoais. Moon é de família refugiada do norte, dividida pela guerra. Ele iniciou sua carreira jurídica como ativista pelos direitos de pessoas afetadas pelo conflito, o que inclui o direito de sepultar entes queridos cujos restos mortais estão do outro lado da fronteira desde o fim da guerra, em 1953. A Coreia do Norte protestar contra os exercícios ou questionar o governo sul-coreano é absolutamente legítimo.
Personalizar essas demandas, entretanto, é um erro. É correr o risco de fechar uma porta escancarada como nunca. Conta-se nos dedos de uma mão os líderes sul-coreanos que aceitariam pisar no norte perante as câmeras da imprensa, tal como Moon fez. Se Kim deseja fazer pressão durante os exercícios militares para conseguir mais concessões, ele provavelmente escolheu o alvo errado e na hora errada.
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