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Desde que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi criada, em 1949, ela passou por momentos de maior e de menor coesão entre seus membros. Habitualmente, as divergências dentro da aliança foram entre os Estados europeus continentais, especialmente a França, de um lado, e os EUA e o Reino Unido do outro. A atual crise envolvendo Rússia, Ucrânia e a aliança mostra, novamente, como os membros da Otan não enfrentam desafios semelhantes, em um emaranhado de interesses.
No último sábado, o ex-comandante da Marinha alemã, o vice-almirante Kay-Achim Schönbach, renunciou ao cargo após ser pressionado devido às declarações que deu em uma palestra. Afirmou que o presidente russo, Vladimir Putin, apenas deseja, e merece, respeito e tratado em pé de igualdade pelos EUA. Principalmente, afirmou que, realisticamente, a península da Crimeia “nunca voltará” ao controle da Ucrânia após a anexação russa em 2014.
Tanto a imprensa alemã quanto o governo ucraniano cobraram o novo governo alemão, de Olaf Scholz, sobre as declarações. O almirante se pronunciou publicamente, afirmando que aqueles comentários eram pessoais seus e não refletiam a posição nem do governo, nem das forças armadas alemãs. Pediu desculpas e apresentou sua renúncia, no que foi mais um desencontro entre Alemanha e Ucrânia. O governo ucraniano já se queixou, mais de uma vez, do fato de que a Alemanha veta que países terceiros exportem armamento alemão para a Ucrânia.
A mais recente coluna aqui em nosso espaço, inclusive, foi sobre essa “triangulação” armamentista. Enquanto países como EUA, Reino Unido e Lituânia estão concertando esforços para enviar armamentos para a Ucrânia, a Alemanha segue outro ritmo. A justificativa alemã para o veto é que sua lei, motivada pelo histórico do país, proíbe a exportação de armas para locais de “crise ativa”. Políticos ucranianos apontam que isso seria hipocrisia, já que a Alemanha é um grande exportador de armamentos.
Realidades nacionais
A questão, entretanto, é outra. Cada membro da Otan terá realidades e interesses diferentes dos outros. Por exemplo, em uma esfera mais ampla, quase cultural, a ameaça de uma guerra seria muito mais destrutiva, com lembranças muito mais recentes, na Europa continental do que no insular Reino Unido ou na América do Norte. O campo de batalha principal, o fluxo de refugiados, a destruição física, tudo isso seria em escala maior na Europa continental.
Já em pontos mais específicos, por exemplo, as relações entre a Alemanha e a Rússia são muito diferentes das entre os EUA e a Rússia, ou o Reino Unido e a Rússia. O fluxo comercial e de investimentos, a herança da divisão alemã, os laços políticos construídos em outras esferas, tudo isso faz com que a política alemã tenha setores tanto que defendem uma política de maior confronto com a Rússia, quanto setores russófilos. Isso sem mencionar eventuais interesses escusos de lobistas disfarçados e a presença de agentes de inteligência estrangeiros.
O maior exemplo dessa relação é o gasoduto Nord Stream-2, que transporta gás natural russo pelo Báltico diretamente até a Alemanha, contornando os países do leste europeu e possibilitando um comércio em maior quantidade e a preços menores. É de interesse da Rússia vender o gás para a Alemanha e é de interesse alemão comprar esse gás. Não são relações tão simples assim. No último dia 13 de janeiro, o Senado dos EUA barrou sanções contra o gasoduto, especialmente com o voto dos democratas, em um exemplo do “emaranhado de interesses” citado.
O governo democrata Biden autoriza o envio de armamentos para a Ucrânia e pressiona a Rússia, e seu secretário de Estado, Anthony Blinken, defende sanções contra o gasoduto. Por outro lado, o mesmo governo, e seus políticos no Senado, é pressionado pelo governo aliado da Alemanha a rejeitar essa possibilidade. Com 55 votos favoráveis, as sanções não obtiveram os 60 votos necessários, e não passou. Se passasse, a discussão seria um eventual veto pela Casa Branca.
Talvez o exemplo mais fresco na memória da falta de coesão na Otan seja o da invasão do Iraque, pelos EUA, em 2003. Dois anos antes, a Otan, em concerto e com autorização do Conselho de Segurança da ONU, interveio no Afeganistão dominado pelo Talibã. Já a invasão do Iraque não teve apoio da França e da Alemanha. Os franceses, inclusive, não autorizaram a operação no mesmo CSNU. Uma pequena onda de suposto patriotismo “anti-França” ganhou força na época, com até estabelecimentos rebatizando as batatas fritas (“french fries”, “fritas francesas” em inglês) como “liberty fries” (“fritas da liberdade”).
O Reino Unido, por sua vez, não apenas apoiou a invasão, mas também participou ativamente. O auge das divergências entre França e Otan foi no período de Gaulle, mas, no último dia 19, o presidente francês Emmanuel Macron defendeu um “diálogo próprio” da União Europeia com a Rússia. “Acho bom que haja coordenação entre a Europa e os EUA, mas é vital que a Europa tenha seu próprio diálogo com a Rússia (...) precisamos na Europa definir coletivamente nossos próprios quesitos e garantir que eles sejam respeitados, e precisamos estar em posição de fazer isso acontecer”.
Diplomatas sendo retirados
O capítulo mais recente dessa diferença de visões se deu no último dia 23. Enquanto EUA e Reino Unido anunciaram que estavam retirando familiares de diplomatas e funcionários não-essenciais da Ucrânia, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, afirmou que a UE não seguiria esses procedimentos ainda, e que não havia necessidade de “dramatizar” a situação enquanto as conversas continuam. Mesmo o governo ucranianou classificou essas retiradas como “prematuras e excessivas”.
Enquanto a Alemanha possui mais laços com a Rússia e a França deseja uma Europa menos dependente dos EUA em questões de segurança, o atual governo britânico de Boris Johnson tem escalado sua retórica em relação à Ucrânia talvez motivado por questões domésticas. Parte do parlamento, dos conservadores e da opinião pública deseja a renúncia de Boris Johnson. Conseguir uma distração externa é bastante conveniente. Ao ponto da inteligência britânica lançar, no último final de semana, um relatório bastante confuso.
Segundo a publicação, o desejo russo é de interferir politicamente na Ucrânia e colocar um governo liderado por um eventual presidente pró-Rússia, até mesmo um eventual agente russo. Tudo muito plausível, mas, em substância, o relatório pouco oferece, isso quando não é contraditório. Por exemplo, dos possíveis nomes em ser esse líder pró-Moscou é listado o ex-parlamentar ucraniano Yevhen Murayev. Que é considerado um criminoso na Rússia e desejado pelas autoridades, além de ter seus bens congelados.
Para ilustrar, outro exemplo é o fato de que, enquanto os governos da Polônia, um membro da Otan, e da Ucrânia possuem posições semelhantes no que concerne à Rússia, os dois não possuem as mais amistosas relações. Outro exemplo é que, no final de 2018, falamos aqui em nosso espaço da integração militar europeia, independente da Otan, um processo. A coluna poderia se debruçar por páginas nas pequenas contradições desse emaranhado de relações.
Ainda assim, é importante deixar uma coisa clara. Quando se fala dessas relações complexas, muitas vezes se cai no reducionismo de “a Rússia dividiu o Ocidente”, uma visão simplória e que corre até o risco de dar mais méritos a Moscou do que os devidos. Na verdade, se tratam de dezenas de países com diversas relações econômicas, políticas e históricas, com muitas questões herdadas da criação desses Estados nacionais, e de uma realidade em que não apenas a vontade de Washington vai prevalecer.