Na madrugada da última quarta-feira, o presidente do Haiti, Jovenel Moïse, foi assassinado em sua residência. A informação veio pelo primeiro-ministro interino, Claude Joseph, e, nas últimas 36 horas, muitas informações desencontradas foram divulgadas.
Ele teria sido morto por uma equipe de mercenários treinados, alguns falantes de castelhano, outro era nacional dos EUA, alguns foram mortos em confronto, outros foram detidos e nada é muito certo. Seria superficial tentar desvendar o que aconteceu e quais as eventuais consequências com tão pouca informação. O que pode ser analisado é como a situação haitiana chegou a esse ponto, e como algumas perspectivas podem ser míopes.
Miopia, nesse caso, em analogia ao seu sentido médico, quando a visão de longe é prejudicial, já que não se trata de debate pontual ou evento isolado. Está inserido no histórico de instabilidade e de baixo desenvolvimento econômico haitiano. E quais as razões para isso? Essa é a pergunta que deve ser feita. Muitas vezes fala-se que uma sociedade é “instável” ou “pouco desenvolvida” como se isso fosse responsabilidade dos astros, de obra divina, de determinação cósmica, e não uma consequência de processos históricos de formação dessas mesmas sociedades, mais a realidade geográfica em que estão inseridas.
A Minustah
Assim que saíram as notícias do assassinato, uma discussão tomou a imprensa brasileira que cobre temas internacionais: qual seria o tamanho da responsabilidade do Brasil nisso? Afinal, o país liderou o componente militar da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH) de 2004 a 2017. Daí a miopia, como se apenas a Minustah pudesse ser responsável pelos eventos haitianos ou, ainda, que a avaliação dos problemas e dos sucessos da Minustah subitamente mudasse com o assassinato. O homicídio foi sintoma, consequência de um processo que já ocorria e continuará a ocorrer, salvo seja remediado de forma apropriada.
Isso quer dizer que a Minustah não possa ser criticada? Claro que pode, por uma série de razões, como seu próprio contexto de sua criação; denúncias de abuso de autoridade e uso exagerado da força; denúncias de violência sexual contra a população local; o surto de cólera, uma doença que já havia sido erradicada no Haiti, iniciado por soldados nepaleses infectados, que custou milhares de vidas; o consequente esforço em encobrir o mesmo surto; a contaminação do rio Artibonite, importante fonte de água potável; a morte do general brasileiro Urano Bacelar; o relativo diminuto tamanho da estrutura médica e educacional, quando comparada com outras missões, como no Timor-Leste; a duração da missão, por um lado longa ao ponto de despertar protestos locais, por outro postergada devido ao terremoto de 2010 e as tentativas de eleições locais.
Tudo isso deve ser analisado e revisto, tanto para a responsabilização dos envolvidos quanto para aprendizados de missões futuras. Infelizmente, não é o que tem ocorrido, já que, como dito anteriormente, muito tem sido varrido para debaixo do tapete. Dentro dessa análise, o que foi falha da missão brasileira e o que não foi também precisa ser separado. Também é necessário analisar o legado do papel brasileiro no Haiti dentro do próprio Brasil, com a participação de militares brasileiros em missões internas e o destaque político dado a alguns dos comandantes da Minustah. Mesmo nessa seara, diga-se, também há superficialidade, como se todos fossem homogêneos, esquecendo, por exemplo, que o general Edson Pujol foi um force commander e entrou em choque com o atual governo.
Mesmo com todas essas críticas, entretanto, é míope achar que apenas a Minustah resolveria todos os problemas haitianos, ou, ainda, que ela é responsável pela violência ocorrida no país. Dizer que o assassinato de Moïse “prova” um suposto fracasso da Minustah é de uma superficialidade chocante.
O que, então, explica os problemas haitianos? Alguns pontos são o fato do país sofrer com sua posição geográfica, com três terremotos catastróficos em sua História independente, incluindo o de 2010, um dos mais destrutivos já registrados, e furacões e tempestades tropicais frequentes. Essa destruição e consequente necessidade de reconstrução agrava o fenômeno da fuga de cérebros. Cerca de três milhões de haitianos vivem fora do país, muitos deles altamente capacitados.
Extorsão
Principalmente, além de qualquer questão geográfica, o Haiti é um dos países mais extorquidos do mundo. Sim, o termo é esse, extorsão. Vai além da violenta exploração colonial ou de relações econômicas desiguais. O Haiti é um país que passou mais de um século obrigado a ceder a riqueza fruto de seu trabalho apenas para poder existir. É esse tipo de trauma e de evento que não pode ser esquecido e que cabe à História lembrar, mesmo que se deseje esquecer. Por 180 anos, o Haiti foi a “Pérola das Antilhas” francesa, uma colônia que produzia cerca de 5% de toda a riqueza da França.
No auge, cerca de 40% de todo o açúcar consumido na Europa no fim do século XVIII era produzido no atual Haiti, e o refino do açúcar na própria ilha proporcionou uma vasta riqueza para os colonos e investidores. Essa riqueza, que financiava a construção de grandes casas de espetáculo na Europa, era produzida por centenas de milhares de africanos escravizados, em uma das colônias mais violentas do continente americano. A maior parte das pessoas escravizadas não resistia a cinco anos na colônia. Segundo o censo francês de 1788, mais de 90% da população da colônia, cerca de 750 mil pessoas, era escravizada.
Veio a Revolução Francesa e o fim da escravidão. Momentaneamente, claro, já que Napoleão a restaurou, apenas no Caribe. O imperador provavelmente foi motivado pelos interesses de sua esposa Josephine, nascida numa rica família escravagista na Martinica, que sofreu grandes “prejuízos” financeiros com a abolição. Essa perda de “propriedades” não seria perdoada pelos franceses. O uso das aspas se deve pelo fato de que essas “propriedades” eram, principalmente, pessoas e a riqueza gerada sob o chicote. Ou seja, uma posse ilegítima. Isso não de acordo com essa coluna no século XXI, mas de acordo mesmo com filósofos contemporâneos dos eventos, iluministas e liberais.
Após expedições, batalhas e a independência haitiana, o novo país estava em frangalhos. Mortos, disputas internas, a devastação econômica causada pelas guerras, um cenário comum a quase todos os países recém-independentes. Com uma diferença, o desejo de vingança pela França. A derrota e a perda de sua “Pérola das Antilhas” não foi aceita, por razões de prestígio nacional, de economia e também por atingir o ideal de superioridade racial europeia. Como vingança, em julho de 1825, a França, sob o desprestigiado rei Carlos X, enviou uma frota para reconquistar a ilha caso suas exigências não fossem atendidas. O monarca, que seria derrubado cinco anos depois, despejou sua fraqueza no trono e os problemas franceses no Haiti.
Riqueza tolhida
A frota invadiria o Haiti e reduziria o país ao estado de colônia novamente, salvo o pagamento de 150 milhões de francos. Me diga o leitor se discorda da definição de “extorsão” para esse ato. Enquanto os outros países americanos se apoiaram mutuamente para a conquista das independências, ninguém aliou-se ao Haiti. Ao contrário, a revolta dos escravizados gerava pesadelos no sul dos EUA, na Grã-Colômbia e no Brasil.
Como consequência, os haitianos tiveram que contrair pesados empréstimos em bancos privados, dos EUA e da própria França, para poder pagar a “dívida” com os franceses, o preço dos próprios corpos e de serem senhores de seu próprio destino. Posteriormente, em 1838, a França deu um “desconto” e a extorsão foi reduzida para 90 milhões de francos.
O Haiti terminou de pagar a França em 1893; no período, 80% do PIB haitiano era direcionado para o pagamento. De cada cinco grãos de café colhidos pelo trabalho de haitianos, quatro serviam aos franceses. Só que isso não significou o fim da dívida, já que agora o Haiti precisava quitar os empréstimos e financiamentos. Por medo de um calote, o país foi ocupado pelos EUA em 1914, com as tropas literalmente tomando as reservas haitianas em ouro e carregando para um navio. O Haiti ficou ocupado por vinte anos, até 1934, com a retirada ordenada pelo novo governo Roosevelt e sua “política de boa-vizinhança”. Durante todo esse tempo, os bancos e a aduana do Haiti ficaram sob controle dos EUA, e 40% do orçamento nacional era canalizado para os bancos.
“Oras, mas isso faz muito tempo, isso é vitimismo do Haiti e do colunista”, podem pensar alguns. O Haiti terminou de pagar a extorsão sofrida apenas em 1947, e a coluna tem certeza absoluta que cada um dos leitores já conheceu alguém nascido antes dessa data. O Haiti foi explorado não a séculos atrás, mas até ontem, em uma situação completamente absurda e ilegítima. E o montante de 90 milhões de francos, convertidos e corrigidos pela inflação, seria algo como 21 bilhões de dólares. Caso os juros sejam adicionados, a conta pode chegar a meio trilhão de dólares, em algumas estimativas. O Haiti possui um PIB nominal estimado na casa de 20 bilhões de dólares.
Nada disso anula ou justifica a corrupção e a violência das ditaduras Duvalier, de Papa Doc e Baby Doc, os conflitos internos entre facções, o histórico de animosidade entre o Haiti e a vizinha República Dominicana.
Uma coisa, entretanto, é um país na ruína sócio-econômica por suas escolhas ou por irregularidades internas. Outra, bastante diferente, é um país ser extorquido da riqueza produzida por seus cidadãos por mais de um século. Numa simplificação rasteira, um restaurante falir por ter um gerente incompetente ou corrupto, é uma coisa, falir por ser extorquido pela máfia, é outra. E é isso que não se pode perder de vista ao falar do Haiti. Sua “crise permanente” é fruto também de atos violentos e ilegítimos dignos não de um Estado, mas de uma quadrilha mafiosa.