O então presidente francês Jacques Chirac participa de cerimônia em Paris, 7 de maio de 2004| Foto: PATRICK KOVARIK / AFP

Jacques Chirac, duas vezes presidente da França, faleceu hoje, dia 26 de setembro de 2019. A coluna de hoje seria sobre os planos de Erdogan para a Síria e para os curdos, reforçados pelo líder turco perante a comunidade internacional na Assembleia Geral da ONU. Com a morte do ex-presidente francês, entretanto, achei apropriado trazer uma reflexão sobre passado e memória.

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O caráter atípico dessa coluna fica claro quando escrevo na primeira pessoa, coisa que raramente faço ao me dirigir aos leitores e leitoras aqui da Gazeta. É que, nesse caso, trata-se muito mais de uma proposta de raciocínio, quase um ensaio. Antes de tudo, Chirac foi presidente da França entre 1995 e 2007, doze anos. Além disso, foi primeiro-ministro em duas ocasiões, entre 1986 e 1988 e entre 1974 e 1976.

A França é um regime semipresidencialista, onde quem manda é o presidente; o primeiro-ministro é muito mais um articulador político, um chefe dos ministros. Fazendo uma analogia, com todos os problemas das analogias, algo similar ao ninistro-chefe da Casa Civil no Brasil. Finalmente, Chirac foi prefeito de Paris por um recorde de dezoito anos, entre 1977 e 1995.

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Qual o motivo da lembrança do currículo do ex-presidente, além de lembrar de quem falamos? Chirac foi um político e teve, e tem, muitos esqueletos no armário. Foi condenado por ter empregado aliados como “funcionários fantasmas” quando prefeito de Paris. Respondeu processos por abuso da confiança pública. Sua vida pessoal foi marcada por casos extraconjugais. Seu gosto por viagens ao Japão tornou-se motivo de chacota.

Ainda assim, é impossível negar a importância de sua figura política. Esse é um problema que vivemos hoje no debate político brasileiro. Confunde-se dar a devida importância com o louvor. Talvez meu texto mais lido aqui nesse espaço seja a coluna sobre o governo Pinochet no Chile. Oras, meu repúdio ao caudilho é claro e óbvio, mas nem por isso a frase “Pinochet é uma figura importante da História do Chile” estaria errada.

Iraque em 2003

Dentre todos esses esqueletos no armário e essa importância, existem dois aspectos que realmente podem ser louvados na carreira de Chirac. Um deles foi a sua resistência em autorizar a invasão do Iraque pelos EUA, em 2003. Uma invasão baseada em mentiras e cujo legado destrutivo ainda é sentido. Não, Chirac não agiu movido apenas por altruísmo ou bons sentimentos, a França tinha laços comerciais com o Iraque.

Foi o próprio Chirac, quando primeiro-ministro, que iniciou as relações entre França e o Iraque de Saddam Hussein. Ainda assim, a argumentação francesa era clara e sustentada. Me lembro, na época estudante, de ver o então ministro de Relações Exteriores da França, Dominique de Villepin, falando sobre o assunto na ONU. Os argumentos dos EUA pela invasão eram falsos e não tinham comprovação por organismos internacionais.

Mais, uma invasão seria custosa em vidas e desestabilizaria toda a região. No período, John Bolton, recém-demitido de sua posição de conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, forçou a demissão do brasileiro José Bustani, chefe da  Organização para a Proibição de Armas Químicas, baseado na chantagem. O motivo? Bustani se recusou a assinar laudos que “comprovariam” as acusações dos EUA.

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O argumento final da França era o de que a força deveria ser o último recurso, e outras etapas ainda podiam ser implementadas. A recusa francesa em apoiar e autorizar a ação dos EUA no Conselho de Segurança, ameaçando exercer seu veto, foi motivo de chacota do outro lado do Atlântico. Quem não se lembra que as batatas fritas (“french fries”, em inglês) foram renomeadas em alguns lugares, como “freedom fries”?

No fim das contas, o tempo mostrou que a argumentação francesa, mesmo que parcialmente motivada por interesses próprios, estava correta. Nos primeiros dez anos após a invasão foram cerca de meio milhão de mortos e dois a três milhões de refugiados. A falta de transição política significou um revanchismo da maioria xiita sobre a minoria sunita no curto prazo. O vácuo de poder propiciou a ascensão do pior grupo terrorista conhecido.

Mais que isso, a violação do direito internacional, quando os EUA passou por cima da comunidade internacional e, de maneira ilegal, invadiu o Iraque, criou uma espiral de descrédito no sistema internacional. O Iraque de Saddam Hussein era um país totalitário, com culto à personalidade e uma ditadura violenta. Não é uma defesa do regime, mas da lei. E ficou uma pergunta no ar: o Iraque teria sido invadido se tivesse armas nucleares?

Foi com essa pergunta em mente que outros países aceleraram seus próprios programas nucleares. Curiosamente, a mentira de deter as armas de destruição em massa do Iraque apenas proliferou o desejo por armas de destruição em massa. Tudo isso que está nos recentes parágrafos, entretanto, pode ser discutido, debatido, admito. É uma perspectiva, dentre várias que podem ser tão válidas quanto.

O Holocausto em 1995

Outro evento da gestão de Chirac, entretanto, precisa ser registrado. Ele teve a coragem necessária, sem nenhum ganho político imediato, para tocar numa ferida. Foi em 16 de Julho de 1995, no memorial de Vel' d'Hiv, quando Chirac tornou-se o primeiro presidente francês que reconheceu o papel de sua nação no Holocausto. Ali, naquele local, em julho de 1942, treze mil judeus franceses foram enviados para campos de concentração.

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“A França, naquele dia, cometeu o irreparável”. Até aquele momento a argumentação oficial francesa era a de que, quando o Estado Francês de Vichy foi formado, em 10 de Julho de 1940, a República Francesa deixou de existir. Sendo assim, todos os atos de Vichy não seria de responsabilidade francesa, mas dos colaboracionistas e, acima deles, dos nazistas. Uma argumentação com claros problemas.

Questionar a continuidade da entidade estatal francesa não exime a nação francesa, no sentido do conjunto de seus cidadãos, de ter tido atitudes colaboracionistas. Muitos foram da resistência? Também, assim como muitos colaboraram. Por serem nazifascistas, anticomunistas, antissemitas, até mesmo razões mesquinhas, como proveitos financeiros. No total, setenta e cinco mil judeus franceses foram deportados.

Esse número jamais seria atingido sem a colaboração de franceses. Chirac disse “Os quatro mil e quinhentos policiais e militares eram franceses”, sobre o ocorrido em Vel' d'Hiv. Vizinhos delataram vizinhos. A análise contemporânea de documentos mostra que a perseguição aos judeus e outras minorias foi uma política adotada em Vichy antes de qualquer pressão nazista para que isso fosse feito.

Foi com Chirac que a França teve que olhar para um passado pouco louvável, distante do romantismo criado em cima da imagem da resistência e de figuras como de Gaulle. E foi pesadamente criticado por isso. A argumentação de que os franceses não tiveram responsabilidade alguma no Holocausto era usada por Jean Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, primeiro partido de extrema-direita na França.

Foi ele o candidato do segundo turno contra Chirac em sua busca pela reeleição, e usou isso na argumentação eleitoral, de que Chirac teria “traído” a memória da França. Sua filha, Marine Le Pen, recentemente candidata francesa, mantém a argumentação de que a nação francesa não tem responsabilidade pela perseguição aos judeus em território francês. E essa não é uma visão apenas da direita francesa.

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O antecessor de Chirac, François Mitterrand, um socialista, mantinha a mesma visão, de que a responsabilidade era dos alemães que então ocupavam a França. Outro motivo que tornou a postura de Chirac corajosa era o de que, em 1995, muitos sobreviventes ainda estavam vivos. Não foi como pedir desculpas pelo massacre de saxões por Carlos Magno em 782. Vítimas, e algozes, estavam vivos e cientes do que aquilo significava.

Existia até o temor de responsabilidades jurídicas, uma avalanche de pedidos de indenização. Ainda assim, Chirac, no início de seu primeiro mandato, deu um raro olhar para a História por um político de carreira e em alto cargo. Uma análise, uma reflexão, do papel que aquela sociedade desempenhou em um episódio importante. A França possui a maior comunidade judaica da Europa, com crescente casos de antissemitismo.

Segundo o Ministério do Interior, foram 311 casos em 2017 e 541 casos em 2018, um aumento de 74%. Proteger o romantismo da resistência francesa não deve ser mais importante do que olhar para a História, fazer uma análise de erros passados e lamentá-los. Lembrar para não repetir. Discursos nacionalistas acima do bem e do mal apenas levam ao esquecimento e à repetição dos mesmos erros.