A oposição turca conseguiu formar sua frente ampla para tentar derrotar Recep Erdogan. Após um breve “susto” e um possível racha, seis partidos opositores entraram em acordo para uma candidatura única, esperando que a junção de forças consiga arregimentar peso suficiente contra o homem que governa a Turquia por praticamente todo o século XXI. Resta ver se a estratégia irá se pagar.
As eleições gerais turcas devem ser realizadas até 18 de junho, mas Erdogan já sinalizou o desejo de adiantar o pleito para o dia 14 de maio. O presidente fez essa declaração inclusive após o trágico terremoto de semanas atrás, que despertou a possibilidade de o pleito ser adiado, e não adiantado. Os partidos de oposição afirmam que a mudança de data precisaria ser aprovada pelo Parlamento.
Erdogan conta com maioria na Grande Assembleia Nacional. Dos 600 assentos, o seu partido, o Justiça e Desenvolvimento, conhecido em turco pela sigla AKP, possui 285. Seus aliados de extrema-direita do Movimento Nacionalista ocupam outras 48 cadeiras. Ou seja, a mudança de data provavelmente seria aprovada sem problemas. O desejo de Erdogan na data é simbólico.
Simbolismos
Foi em um 14 de maio, mas em 1950, que o Partido Popular Republicano foi derrotado pela primeira vez, então liderado por İsmet Inonu. Conhecido em turco pela sigla CHP, o partido é o lar do Kemalismo, a visão de Mustafa Kemal Ataturk, o “Pai dos turcos”, para a Turquia. Uma república secular, cientificamente progressista e desenvolvimentista. Hoje, o CHP é a maior oposição ao AKP, com 134 cadeiras no Parlamento.
Esse pleito turco está carregado de simbolismos. Além da data proposta por Erdogan, trata-se do ano do centenário da República da Turquia, em outubro. A Turquia de Erdogan, entretanto, é distante do Kemalismo. Após a nebulosa tentativa de golpe de Estado em 2016, Erdogan perseguiu, e persegue, seus opositores, muitos deles ligados ao Kemalismo e suas bandeiras.
Principalmente, Erdogan é um crítico de um Estado secular, implementando cada vez mais elementos religiosos em escolas e nas instituições. Grande símbolo disso foi a restauração de Hagia Sofia ao papel de mesquita, assunto que abordamos aqui em nosso espaço em julho de 2020. Outro simbolismo está no fato de que a aliança de oposição é composta por seis partidos, remetendo às Seis Flechas do Kemalismo.
Na última segunda-feira, Kemal Kilicdaroglu, líder do CHP, se encontrou com Meral Aksener, líder do partido nacionalista com quinta maior bancada no Parlamento e que ameaçava romper com a aliança. Um acordo foi fechado e a aliança selada. Somados, os seis partidos da aliança teriam 175 dos 600 assentos no Parlamento. A aliança de esquerda e de partidos curdos ocupa outras 60 cadeiras. Por fim, há os independentes e assentos vagos.
Candidatura
A aliança de esquerda ainda não definiu seu candidato. Já Kilicdaroglu é líder da oposição e do CHP desde 2010, parlamentar com 20 anos de experiência. Antes disso foi um burocrata, um servidor público. Sua principal qualidade é a de ser um articulador parlamentar, um político astuto que conseguiu costurar a aliança de partidos opositores, justamente a que o lançará candidato.
Por outro lado, aos 74 anos de idade, ele é inexperiente no Executivo, nunca ocupando um cargo. Além disso, coleciona derrotas em sua carreira, como nas eleições para a prefeitura de Istambul e no voto que expandiu os poderes de Erdogan em 2017. Ele também afasta o voto de setores de esquerda, ao menos em um primeiro turno, por já ter sinalizado simpatia aos Lobos Cinzentos, organização neofascista turca.
Candidatura mais forte possivelmente seria a de Ekrem İmamoglu, prefeito de Istambul, que derrotou o candidato de Erdogan para a cidade em 2019, em um pleito que foi judicializado pelo governo nacional. Imamoglu, por outro lado, é bem mais novo, tem 52 anos de idade, e possivelmente aguarda ser o sucessor na liderança do CHP. Ou, ainda, espera por um desgaste ainda maior de Erdogan no futuro próximo.
Além disso, Imamoglu teria que travar uma luta judicial para poder ser candidato, já que ele foi condenado a dois de prisão e inelegibilidade por “insultar autoridades”, uma farsa legal para afastá-lo do pleito. As pesquisas eleitorais, inclusive, apontam que Imamoglu teria mais chances contra Erdogan do que Kilicdaroglu. As pesquisas na Turquia, claro, devem ser tomadas com mais cautela do que o normal.
Frente ampla
A imprensa e as universidades são controladas, o Judiciário e as forças armadas passaram por um expurgo. As críticas ao gerenciamento da crise pós-terremoto pelo governo Erdogan motivaram mais buscas por bodes expiatórios. E é justamente por essa posição centralizadora e autocrática que Erdogan precisa ser derrotado nas urnas, motivando uma ampla aliança como a vista.
A estratégia na Hungria, contra Orbán, foi similar, e não funcionou. No caso húngaro, pelas contradições internas à frente ampla, mas também pela escolha de um candidato pouco expressivo. No caso turco, mesmo que Kilicdaroglu não seja o candidato dos sonhos, ele é uma figura de presença nacional por uma década. E, em segundo turno, a esquerda votará nele, nem que seja “tapando o nariz”.
Ainda é necessário lembrar que a Turquia passa por grave crise econômica, com a lira turca sendo uma das moedas que mais perderam valor nos últimos anos. Refugiados sírios, conflitos no entorno estratégico e as relações com a União Europeia são outras pautas importantes para o pleito. No fundo, no fundo, entretanto, a divisão turca será entre tirar ou não Erdogan do poder depois de duas décadas.