Hoje teremos a abertura da 75ª Sessão da Assembleia Geral da ONU. Como de costume, o Brasil abre o debate das declarações dos países, com o presidente Jair Bolsonaro. Algo que não é de costume, entretanto, é que será um discurso pré-gravado, transmitido em um telão no salão vazio em Nova Iorque, assim como para o mundo pela internet. Culpa da pandemia do novo coronavírus e uma perda notável para a comunidade internacional num ano já difícil e cheio de desafios.
Claro que existe uma perda simbólica, já que é justo a abertura do Jubileu de Diamante da organização. Pessoas se apegam à símbolos e números. Por algum motivo, o aniversário de 75 anos de nossas avós nos mobilizam mais do que o de 74 ou o de 76 anos de idade. Um exemplo que soa bobo, mas transmite a ideia. Certamente a efeméride estará presente em todos os discursos e seria também uma data interessante para reforçar a importância brasileira na fundação da ONU.
Discursos
O prejuízo vai além da simbologia, entretanto. O chamado Debate Geral consiste em seis dias de pronunciamentos de cada um dos Estado-membro da ONU, mais os dois observadores permanentes, a Santa Sé e a Palestina. A abertura propriamente dita é feita pelo Secretário-geral da ONU, seguido pelo presidente da sessão e, então, os Estados nacionais. Começando pelo Brasil, por tradição estabelecida na primeira sessão, seguido pelos EUA, onde está localizada a sede da Assembleia.
Daí em diante os cronogramas variam em cada ano, dependendo desde pedidos especiais das delegações até do trânsito urbano em Nova Iorque. Os discursos podem servir para diversos propósitos, algo constatado depois da leitura de dezenas deles. Delinear as prioridades daquele Estado perante a comunidade internacional, responder ou fazer acusações contra outro Estado, reiterar reivindicações ou apontar injustiças, pedir apoio e solidariedade e até mesmo dar recados para o público interno do seu país.
Alguns momentos históricos dos últimos 75 anos aconteceram justamente ali, seja por sua importância, como o discurso de Yasser Arafat e seu “ramo de oliveira” em 1974, até os que se tornaram históricos de tão pitorescos, quando Fidel Castro falou por mais de quatro horas em 1960. Muitas vezes os pronunciamentos são feitos por chefes de Estado ou de governo, o que está no cerne da importância da Assembleia Geral. Por apenas alguns dias, mais de uma centena dos líderes do mundo estão no mesmo local.
Contato humano
Isso permite contatos e reuniões, desde informais até mais elaboradas e sensíveis. Algo que muitos chamariam de “networking”, e importante no mundo da diplomacia. No ano passado, por exemplo, a oportunidade representada pelo evento possibilitou encontros bilaterais de Donald Trump com seis primeiros-ministros e seis presidentes diferentes. Doze líderes internacionais em três dias, discutindo desde comércio até migração, algo impensável em outras circunstâncias.
O exemplo de Trump foi usado por ser uma agenda facilmente verificável, mas absolutamente todo e qualquer líder presente realiza esse tipo de reunião. E uma miríade de outras reuniões são realizadas, envolvendo ministros, secretários, representantes, empresários, etc. Isso inclusive reforçou a necessidade do formato virtual, já que seria impossível evitar “aglomerações” em Nova Iorque. Presidentes não viajam sozinhos, como indivíduos, mas com delegações, desde seguranças até “aspones”.
O fato de tantas lideranças estarem no mesmo local ao mesmo tempo também permite encontros mais “casuais”, fora de pautas, para discutir temas mais sensíveis ou começar novos processos. Em 2014, por exemplo, David Cameron, então primeiro-ministro do Reino Unido, se encontrou com Hassan Rouhani, presidente iraniano, em Nova Iorque. O encontro foi numa sala de escritório, sem pompa, durou pouco e foi quase informal. E um momento cujos impactos ainda ressoam.
Foi a primeira vez que um líder de governo britânico falou com seu equivalente iraniano desde a revolução de 1979. Mais de trinta anos de silêncio são melhor rompidos pessoalmente do que por telefone ou correspondência. Naquele momento o governo britânico embarcou na ideia de um acordo em relação ao programa nuclear iraniano, finalmente anunciado em abril de 2015. Três anos depois, o governo Trump retirou seu país do acordo e retomou a política de sanções.
Essa política é motivo de distensão entre os EUA e seus aliados europeus e certamente estará presente no discurso de Trump hoje. Possivelmente o tema será resgatado no Conselho de Segurança também. Não significa que tudo começou ou que o negócio foi fechado naquele escritório de Nova Iorque entre Cameron e Rouhani, mas que um passo importante foi dado na construção de uma relação, e que esse passo só foi possível pela presença mútua dos líderes na Assembleia Geral.
Em um ano difícil, que uniu crises já existentes, como as guerras na Síria e na Líbia, com novas crises, como as disputas marítimas no Mediterrâneo oriental e, óbvio, a própria pandemia, o mundo poderia se beneficiar de conversas olho no olho entre seus líderes. Novos governantes poderiam mostrar seus cartões de visita. Infelizmente, nada disso ocorrerá e esse é o maior prejuízo do singular formato online da Assembleia Geral da ONU em 2020. Até nas relações internacionais o contato humano faz falta.
Itamaraty de Lula lidera lobby pró-aborto na ONU com radicalismo inédito
“Desastre de proporções bíblicas”: democratas fazem autoanálise e projetam futuro após derrota
Bolsonaro diz que Congresso é mais importante que STF e pode reverter inelegibilidade
Copom eleva juros e dá bronca no governo mais uma vez
Deixe sua opinião