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A política externa de Trump no State of the Union de 2019

Foto: Zach Gibson/Getty Images/AFP (Foto: )

Donald Trump trouxe uma novidade perante o Congresso dos EUA nesta semana. Após uma semana de atraso, o presidente do país apresentou seu discurso de Estado da União (State of the Union) de 2019, parte da abertura dos trabalhos legislativos. O atraso ocorreu por causa do mais longo fechamento do governo federal dos EUA em sua História. Mesmo assim, o shutdown chegou ao fim de maneira temporária, e o governo pode fechar suas atividades novamente em breve. Esse discurso é uma tradição política dos EUA que serve a múltiplos propósitos.

Todo ano o presidente dos EUA fala perante o Congresso, com a presença de seu gabinete, dos juízes da Suprema Corte e dos comandantes militares. Desde 1981, o presidente sempre fala presencialmente; no século XIX a regra costumava ser uma mensagem escrita lida no recinto, exceção a presidentes recém-empossados. No State of the Union o chefe do Executivo apresenta como está o governo federal, quais suas metas e prioridades, quando solicita apoio do Legislativo. Serve também para falar ao público e nortear quais são suas políticas. Uma tradição que poderia inspirar algo similar no Brasil.

O discurso pode ser lido na íntegra no site da Casa Branca, no idioma original. A leitura, por um lado, economiza tempo, já que uma soma de protocolo com claque faz com que o presidente seja interrompido após duas ou três frases para aplausos, o que transforma o discurso em um evento de quase duas horas de duração. Por outro, perde-se algumas caras e bocas interessantes, a entonação e alguns momentos fora do script. Nesse aspecto, pode-se amar ou odiar Trump, mas qualquer pessoa precisa admitir que ele sabe lidar com um evento dessa escala, transformando em um espetáculo.

Os exemplos mais explícitos desse comportamento foram os convidados presentes, sempre mencionados como modelos do que era dito. Trump abriu mencionando duas efemérides de 2019. Os 75 anos do Dia D, a operação aliada na Normandia que inicia a libertação da França, e os 50 anos do pouso da Apollo 11 na superfície da Lua. Presentes estavam três veteranos do Dia D e o astronauta Buzz Aldrin, segundo homem que pisou na Lua. Diversas outras passagens foram similares, com o anúncio de uma política sendo ilustrado pelos presentes: policiais, um sobrevivente do massacre da sinagoga de Pittsburgh, uma pequena garota que tratou-se de um câncer.

Infelizmente, a maioria das pessoas acabou prestando mais atenção apenas na parte cômica dos convidados. O garoto Joshua Trump, convidado pois sofre bullying na escola pelo seu nome. O gesto de simpatia do presidente acabou viralizando fotos do garoto tirando uma bela soneca durante o discurso. No que concerne ao texto e a sua abordagem de política externa, Trump repetiu sua postura de “America First” logo no início. Nesse tema, o discurso, no geral, não teve muitas mudanças ou novidades. Apenas a reafirmação de políticas já declaradas, com a soma das bravatas também típicas de Trump.

Oriente Médio

O Oriente Médio foi o foco de comentários mais variados de Trump. Repetiu sua abordagem de “realismo com princípios”, mencionou a embaixada em Jerusalém e focou-se na questão de retirada das tropas dos EUA da região. “Grandes nações não lutam guerras sem fim”. Parte dos comentaristas pegou no pé de Trump por colocar o Afeganistão no Oriente Médio, mas isso é uma bobagem. Embora geograficamente o Afeganistão não esteja na região, geopoliticamente ele está sim, o chamado Grande Oriente Médio, que adiciona Afeganistão, Paquistão e o Magrebe ao Oriente Médio.

Ao falar de números, Trump disse que as tropas dos EUA estão no Oriente Médio por 19 anos; que quase sete mil soldados dos EUA deram suas vidas, com mais de cinquenta mil feridos, e que o país gastou mais de sete trilhões de dólares nessas guerras. Esse último número está bastante inflacionado. O custo das guerras no Oriente Médio chega na casa dos dois trilhões de dólares; um montante gigantesco, sem dúvida, mas menos da metade do dito. Trump provavelmente tomou o número de sete trilhões de um estudo que, prevendo os gastos com veteranos e equipamentos até 2050, a soma chegaria nesse valor. Como as manchetes se focaram no número, acabou tornando-se “verdade”.

Para justificar a retirada dos EUA da região, Trump citou a perda de territórios pelo Daesh e um possível acordo com o Talibã no Afeganistão. No primeiro caso, é importante notar que ele não citou uma data para a retirada dos EUA, nem disse que o Daesh foi destruído, duas coisas que ele fez anteriormente, gerando desencontros com as lideranças militares. Além disso, sobre o Afeganistão, as negociações ainda estão longe de um acordo, especialmente pelo fato do Talibã não aceitar negociar com o governo afegão. Corre-se o risco de um novo vácuo de poder que seja ocupado por extremistas.

Sobre o Irã, não ocorreu nenhum anúncio de nada novo. O regime foi classificado como o maior patrocinador do terrorismo e Trump disse que tirou o país do acordo nuclear para evitar que a “ditadura corrupta” tenha armas nucleares; importante lembrar que, na última semana, os países europeus anunciaram a criação do mecanismo paralelo de comércio. Isso vai permitir aos europeus, que ainda estão no acordo, investirem no Irã e comprarem petróleo do país, contornando as sanções dos EUA e o uso do dólar do país. Trump também ligou o Irã ao antissemitismo, ilustrado por policiais e um sobrevivente da citada sinagoga de Pittsburgh.

China, Rússia e aliados

Novamente, sem grandes novidades. Trump defendeu sua política comercial e tarifária contra a China; para não fechar nenhuma porta, culpou “governos anteriores” por essa situação, elogiando Xi Jinping, seu antagonista nessa negociação. Também nesse contexto comercial, Trump citou o Nafta e sua nova versão, renegociada, o USMCA, uma zona de livre-comércio com Canadá e com o México. Citou o aumento de postos de trabalho em atividades industriais e defendeu sua perspectiva de que o país estava perdendo com o Nafta.

Trump também defendeu o aumento de gastos militares em seu governo e sua política de fazer aliados da OTAN gastarem mais, e não apenas dependerem da proteção dos EUA. Sendo justo, embora Trump tenha tido sim um papel importante em pressionar países europeus, os gastos militares dos países europeus da OTAN estão em tendência de crescimento desde 2014 e a crise da Crimeia, por motivos óbvios, um episódio que antecede o governo Trump. Finalmente, Trump mencionou a retirada do país do Acordo sobre Armas Nucleares de Alcance Intermediário, conhecido pela sigla em inglês INF.

Aqui Trump transparece o verdadeiro motivo da retirada dos EUA, como explicado anteriormente e algo pouco compreendido em boa parte da imprensa. Os EUA estavam no acordo com a Rússia, somente os dois países estavam obrigados ao cumprimento dos termos. Qualquer outro país pode desenvolver armas desse tipo, que são mais perigosas pois são difíceis de interceptar, ficam ligadas diretamente ao teatro de operações, com pouquíssimo tempo de reação.

Para justificar sair de um acordo entre EUA e Rússia, os EUA precisam, obviamente, culpar os russos pela sua saída. A verdade, entretanto, é outra. O foco é a China, que desenvolve diversos mísseis de alcance intermediário, podendo atingir bases dos EUA na Coreia, no Japão e em algumas ilhas do Pacífico. Por sua vez, as forças armadas dos EUA não conseguem responder essa ameaça na mesma medida. Precisam respaldar-se em bombardeios ou submarinos para curto alcance, ou em mísseis balísticos de longo alcance.

É para preencher esse vácuo contra a China que os EUA saíram do acordo. E Trump disse “Não tivemos escolha. Talvez possamos negociar um acordo diferente, adicionando a China e outros, talvez não possamos. Nesse caso, nós vamos gastar mais e inovar mais do que todos os outros, de longe”. O recado é claro. Um novo INF não está descartado, porém, precisa vincular outros países, outros potenciais inimigos dos EUA, substituindo o acordo assinado quando apenas EUA e URSS jogavam nesse tabuleiro, e quando, para Washington, a ameaça vinha apenas de Moscou.

A grande novidade

A novidade do discurso veio em um parágrafo sobre a Península da Coreia. Trump irá se encontrar com Kim Jong-un, da Coreia do Norte, nos dias 27 e 28 de fevereiro, no Vietnã. Agora uma cúpula de dois dias, talvez mais ambiciosa. E em um local mais influente do que Singapura, um peso-pesado do comércio com seu porto, mas uma cidade-estado. O Vietnã, por outro lado, é uma das economias que mais cresce no mundo, possui boas relações com a Rússia e sediou, recentemente, a cúpula da ASEAN.

Nesse mesmo contexto, Trump bravateou novamente. “Se eu não tivesse sido eleito presidente dos EUA, nós estaríamos, agora, em minha opinião, em uma grande guerra com a Coreia do Norte”. Especulações de lado, Hillary Clinton provavelmente teria uma política mais belicosa que a de Trump. Daí uma guerra ter sido evitada pela simples eleição de Trump vai um pélago, até pelo fato de, como explicado anteriormente, Trump não ser o único ator nessa reaproximação, com as repúblicas coreanas como maiores interessadas.

Muro, Venezuela e…Brasil?

No que concerne a região da América Latina, Trump fez repetidas defesas de sua proposta para uma “barreira física” na fronteira sul, contra imigrantes irregulares. Em uma mudança de discurso, Trump disse querer que os EUA recebam “o maior número de pessoas de todos os tempos”, mas que elas entrem de forma regularizada. Trump também mencionou a Venezuela e o fato de que seu governo reconhece a autoridade de Juan Guaidó como presidente do país. Novamente, nada de novo.

Uma breve fala, entretanto, pode ter repercussões futuras em relação ao Brasil. E sequer era no contexto internacional. Trump estava falando da saúde nos EUA, e suas propostas de reforma no ramo. Um dos temas que ele abordou foi o preço dos remédios. Contrariando uma postura de décadas do Partido Republicano, Trump defendeu que os custos e os preços internacionais dos remédios e seus componentes sejam divulgados publicamente, dizendo que é “inaceitável” que cidadãos dos EUA paguem mais do que o resto do mundo pelos mesmos remédios produzidos nos mesmos locais.

E pediu ao Congresso que ajude a “lidar com o problema dos aproveitadores pelo globo e entregue honestidade e transparência de preços para os pacientes dos EUA”. E qual a relação com o Brasil? O contencioso sobre a chamada Licença Compulsória de Patentes, o popular “remédio genérico”, que, embora seja a maioria do mercado dos EUA, ainda é combatido por vários laboratórios, e responsabilizado pelos preços. O Brasil teve um papel de liderança mundial nesse processo, com Celso Amorim como embaixador na OMC, e, até hoje, o tema é foco de disputas. Das poucas novidades do discurso, essa é uma para o futuro.

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