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Espaço pós-soviético é um dos temas mais recorrentes dessa coluna. Em suma, o termo se refere principalmente às relações entre a Rússia e os outros catorze países que formavam a União Soviética. Crise da Crimeia, guerras no leste da Ucrânia e entre Rússia e Geórgia, a situação das minorias étnicas dentro dos novos Estados nacionais, tensão nos países Bálticos, todos esses exemplos são bastante conhecidos. Outro é o conflito entre Armênia e Azerbaijão, recentemente marcado por um cessar-fogo e sua rápida violação. A Ásia Central, entretanto, costuma ficar de fora dos holofotes, por diversos motivos. Os eventos mais recentes em uma das ex-repúblicas soviéticas, entretanto, implicam prestar atenção no que está ocorrendo ali, com possíveis efeitos globais.
O citado conflito entre Armênia e Azerbaijão, inclusive, foi tema de coluna na semana passada, cuja leitura é recomendada, já que acompanha um panorama mais amplo dos conflitos no espaço pós-soviético. No caso da Ásia Central, as últimas duas semanas foram de intensos protestos no Quirguistão, com ao menos uma morte. “A coluna será sobre o Quirguistão?!”. Espere, vou explicar o motivo desse foco. E sim, é perfeitamente compreensível a surpresa, já que não se trata de país que atrai grande atenção ou interesse. Não é uma potência econômica ou militar, longe disso. Também não é um grande destino turístico para brasileiros e, de uma população já pequena, não há grande grande comunidade quirguiz no Brasil.
Fatos
O principal desdobramento da crise atual se deu ontem, dia 15 de outubro, com a renúncia do presidente Sooronbay Jeenbekov. A crise começou duas semanas atrás, após os resultados das eleições parlamentares realizadas em quatro de outubro. Com o comparecimento de pouco mais da metade do eleitorado, o governo conseguiu formar ampla maioria, com 107 assentos dos 120 da casa. O resultado foi visto como ilegítimo, com denúncias de fraude e compra de votos, motivando protestos na capital, Bishkek. Os protestos escalaram e a repressão policial motivou a maior presença de manifestantes, num cenário bastante comum. O que não é comum é que os manifestantes ocupem o palácio presidencial, o parlamento e libertem um ex-presidente preso. E tudo isso de fato aconteceu no Quirguistão.
O ex-presidente Almazbek Atambayev estava preso desde agosto de 2019 por acusações de corrupção e de supostamente tentar orquestrar um golpe após ter deixado o poder. Outro prisioneiro libertado por manifestantes foi o ex-primeiro ministro Sadyr Japarov. No dia seis de outubro os resultados da eleição foram declarados nulos e o então primeiro-ministro Kubatbek Boronov renunciou. Isso gerou um vácuo de poder, com duas facções se declarando como legítimas. Além da disputa entre facções políticas, o presidente Jeenbekov colocou o exército nas ruas da capital e declarou estado de emergência, com o ex-presidente Atambayev novamente preso. O outro libertado, Japarov, foi declarado primeiro-ministro interino em dez de outubro, mas sua nomeação foi rejeitada pelo presidente. O desgaste da recusa e a ameaça de um processo de impeachment, ou até de escalada violenta, causou a renúncia de Jeenbekov.
Contexto interno
Em teoria, o principal líder político do país agora é Japarov, ocupando interinamente os cargos de presidente e de primeiro-ministro. Esse é o resumo factual dos eventos recentes. Agora vamos aos contextos, locais e regionais, e porque eles importam. Dois elementos importantes nos protestos e nas rupturas em facções políticas são as divisões internas do país. Primeiro, um sul rural e um norte urbano. Segundo, um quarto da população do país não é etnicamente quirguiz, com cerca de 9% de russos, concentrados no norte, e de 15% de uzbeques, concentrados ao sul, na fronteira com o Uzbequistão, com o perdão da obviedade. No sul, a população é etnicamente quase meio a meio. Essa é uma discrepância fronteiriça e populacional herdada do período soviético, quando ela não era um problema, numa situação parecida ao que ocorre no Cáucaso e explicado na coluna já citada.
A enorme estepe da Ásia Central, que liga a grande massa terrestre eurasiana, cria uma fronteira porosa, com enclaves em ambos os lados da divisa. Tanto quirguizes quanto uzbeques são povos túrquicos, de origem nômade. Ainda assim, existem diferenças entre as duas populações, com tensões étnicas ocorrendo no Quirguistão desde a dissolução soviética. Segundo os quirguizes, pelas regras eleitorais do país, como todo o território é um único distrito eleitoral, existe um desequilíbrio na representação no parlamento, com muito mais assentos ocupados por políticos do sul, aliados do ex-presidente Jeenbekov, do que ocupados pelo norte, causando também um desequilíbrio entre os dois grupos nacionais.
Para os quirguizes, eles são sub-representados em seu próprio país. Não é coincidência que os protestos contra as eleições começaram no norte, urbano e de maioria quirguiz, onde o nacionalismo é crescente. Outro fator de tensão no país, e na região, é o do radicalismo islâmico, especialmente no sul agrário. A maioria dos quirguizes é muçulmana sunita e, nos últimos anos, a prática religiosa tem ganhado destaque, especialmente pelos nacionalistas, como maneira de marcar uma divisão entre o país soberano contemporâneo e o passado soviético secular e de elos com Moscou. Não ocorreram grandes atentados terroristas no país, mas militares quirguizes supostamente já desertaram para se juntar à grupos radicais.
O principal exemplo disso na região talvez seja o do coronel Gulmurod Khalimov que, de comandante das forças especiais do Tadjiquistão, tornou-se “ministro da guerra” do Estado Islâmico. Seguidos governos quirguizes tentaram transmitir a ideia de serem firmes na luta contra o terrorismo. Somado à localização do país, perto do Afeganistão, o país foi uma das principais bases na chamada Guerra ao Terror dos EUA. De 2001 a 2014, Washington operou a base aérea de Manas no país, servindo especialmente para voos de transporte e abastecimento, com suspeitas de voos clandestinos realizados pelas agências de inteligência com prisioneiros considerados perigosos.
Contexto externo e a História
Como “compensação”, em 2003 o governo cedeu uma base aérea aos russos, para manter equilíbrio nas relações entre o Quirguistão e as duas potências. A presença militar dos EUA seria, inclusive, potencial elemento de incentivo russo para a revolução de 2010. Outro ator externo importante na política e na economia do país é a Turquia, ambos membros do Conselho Túrquico. As presentes tensões entre Ancara e Moscou, e também entre Ancara e Washington, coloca mais um ingrediente nas divisões políticas internas. Não que alguma facção poderia se dar ao luxo de distender uma dessas relações, mas certamente existem prioridades.
Finalmente, a cada vez maior presença chinesa no país. O território que hoje corresponde ao Quirguistão era parte da antiga Rota da Seda e Pequim deseja que seja parte da nova. Um potencial acordo de livre-comércio entre o país e a China, assinado em 2019, foi descartado após protestos. O território quirguiz não é rico em hidrocarbonetos, mas é rico em recursos minerais, como urânio e ouro. A segunda maior mina de ouro do mundo fica no país, em Kumtor. A geografia do país, com rios e montanhas, permite abundância de fontes de energia. Ou seja, é um país pobre e rural, mas com enormes potenciais de investimento. Ou de exploração, dependendo de quem olhar. Temos então um país pequeno e pobre, em situação institucional frágil, etnicamente tenso, cercado pelos interesses de potências maiores. O que tudo isso pode implicar?
O Quirguistão é o país com condições mais democráticas da região, segundo o Democracy Index. Ou menos autoritárias, melhor dizendo. Das cinco ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, o país é o único que passou por alguma forma de revezamento de poder e possui instituições minimamente representativas. Em contraste, vizinhos como o Cazaquistão e o Uzbequistão tiveram os mesmos ditadores por mais de duas décadas. O atual mandatário interno, Japarov, foi um dos principais envolvidos na revolução de 2010, então como apoiador do governo. A revolução levou ao referendo que aprovou a atual constituição do país, que diminuiu os poderes do presidente e aumentou os poderes do primeiro-ministro, numa maior divisão de poder.
Até aquele momento o Quirguistão tinha um modelo similar ao russo e ao francês, com o presidente como principal mandatário e o primeiro-ministro mais como um chefe dos ministros. Uma espécie de “ministro-chefe da Casa Civil” no Brasil. Esse viés menos autoritário quirguiz talvez corra o risco de colapsar, talvez não, pelas características de filiação quase tribal do país, mas certamente colabora para que líderes autoritários, como os vizinhos ou do Azerbaijão, apontem o Quirguistão como modelo da “fraqueza” da democracia, como o país “justificaria” um governo “forte” e de “ordem”. As divisões internas são ainda exacerbadas pelas potências, com suas agendas próprias. Somando esses dois fatores, se for para a coluna “botar dinheiro”, a solução adotada será um “grande acordo nacional” mediado pela Rússia, com Ancara como principal adversária. Uma repetição menos violenta do que ocorre no Cáucaso, ambas as situações remetendo ao Longo Século XIX. Quem disse que estudar História diz respeito apenas ao passado?