Ouça este conteúdo
Na noite do último dia 31 de agosto, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos publicou seu aguardado relatório sobre Xinjiang e a questão dos uigures. Intitulado “Avaliação do ACNUDH sobre as preocupações com os direitos humanos na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, República Popular da China”, o documento contém 48 páginas em inglês separadas em oito capítulos. Além de acusações, questionamentos e recomendações, é interessante vermos o contexto de sua publicação e o que provavelmente acaba sendo sua principal disputa com o governo chinês.
Primeiro, é interessante notar que a então alta comissária, Michelle Bachelet, autorizou a publicação do relatório literalmente treze minutos antes de seu mandato acabar. Ela já havia anunciado que não buscaria um segundo mandato no cargo. A pessoa ocupante é nomeada pelo Secretário-Geral da ONU e precisa ser aprovada pela Assembleia Geral. Pressões políticas fazem com que seja virtualmente impossível aprovar um nome que não tenha o apoio das cinco potências do Conselho de Segurança. Ou seja, o quê, ou quem, fez Bachelet desistir de um segundo mandato e publicar o relatório no apagar das luzes?
A verdade é que não se sabe. Alguns falam que foi pressão chinesa, pressionando contra o relatório. Outros dizem que teria sido uma queixa dos EUA e do Reino Unido pelo relatório supostamente “pegar leve”. Até a própria Bachelet escrever suas memórias, algo do tipo, fica ao gosto do freguês. A acusação de “pegar leve” se dá pelo fato de que o relatório não usa, em nenhum momento, a palavra genocídio, a acusação feita pelos EUA contra a China. O termo também é utilizado em algumas declarações feitas por parlamentos, como o do Canadá, o do Reino Unido e o dos Países Baixos.
Genocídio
Aqui cabem dois esclarecimentos. Primeiro, genocídio é um crime tipificado pela Convenção sobre Genocídio das Nações Unidas, de 1948. Critérios precisam ser atingidos para que essa acusação seja feita. Segundo, o relatório não é um julgamento, não poderia ser taxativo sobre um crime como o genocídio. Na verdade, o relatório, por não ter a autoridade ou o poder legal de um julgamento, aponta indícios e faz recomendações. Fala em “evidências críveis” de tortura e de outros abusos dos direitos humanos, e que esse conjunto de ações possivelmente constituiem crimes contra a humanidade.
Além de tortura, o documento fala em detenções arbitrárias, separação de famílias, suspeitas sobre os vínculos de trabalho dessas pessoas, medicação forçada, violência de gênero e violações de direitos reprodutivos. O documento pode ser lido na íntegra em inglês. Também foi publicada uma resposta chinesa ao relatório, com 131 páginas. A China rebate as acusações e também afirma que diversas delas são fabricações feita pelos EUA e por governos rivais da China, em uma tática que o governo chinês chama de “deter a China pela desestabilização de Xinjiang”.
A região de Xinjiang é a maior da China, com cerca de um sexto do território total do país. Sua população de cerca de 26 milhões de habitantes é dividida entre diversos grupos étnicos. Segundo os dados do censo chinês, 51% são uigures, 34,3% são han e 6,9% são cazaques, com outros grupos com menor representação. A região é rica em recursos minerais, incluindo hidrocarbonetos e lítio, além de ser uma importante fronteira terrestre. Ali a China faz fronteira com Afeganistão, Índia, Cazaquistão, Quirguistão, Mongólia, Paquistão, Rússia e Tadjiquistão.
Interesses
Por isso, Xinjiang oferece importantes rotas terrestres e conexão com a Ásia Central, sendo essencial na “Nova Rota da Seda” chinesa. Por essa importância geográfica que a China acusa as potências ocidentais de querer influenciar a presença chinesa ali. Outra questão é a identidade túrquica. Os uigures são um povo túrquico e alguns grupos defendem a independência de um Turquestão Oriental. Essa identidade cultural túrquica fez com que a República da Turquia, em alguns momentos, tivesse fornecido maior apoio aos uigures. Existe uma grande comunidade uigur na Turquia.
Também é essa importância geopolítica que faz com que a China argumente que precisa combater o extremismo muçulmano e o radicalismo em Xinjiang. O documento de defesa chinês lista diversos episódios de violência na região antes do que a China chama de leis anti-terrorismo. Principalmente, a China argumenta que todas suas ações são respaldadas por suas leis e orientadas pela constituição chinesa, e que o combate ao terrorismo é, em si, uma proteção dos Direitos Humanos. Claro que essa coluna faz uma abordagem bastante condensada dos dois documentos.
Soberania do Estado
Chega-se ao ponto que, embora certamente não seja o assunto mais atraente para manchetes e engajamento nas redes sociais, é o legalmente mais delicado. O que o relatório da ONU faz é justamente criticar as leis anti-terrorismo chinesas. Segundo o documento do ACNUDH, as leis chinesas são “vagas” e intencionalmente abertas à interpretação, permitindo que muitos atos e condutas possam ser classificados como indicadores de extremismo e suspeita de criminalidade.
O relatório aponta que alguns desses supostos indícios podem ser apenas “a manifestação de escolha pessoal na prática de crenças religiosas islâmicas ou expressão legítima de opinião”. As acusações de extremismo, posteriormente, podem resultar em detenções arbitrárias e que é razoável concluir que um “padrão de detenções arbitrárias” aconteceu entre 2017 e 2019. Também afirma que muitos dos internados nas instituições de ensino e treinamento vocacional, que os EUA chamam de “campos de concentração", não foram devidamente informados e não podiam consentir sobre sua internação.
Novamente, a defesa chinesa é de que fez tudo respaldada pelas suas próprias leis. O cerne da questão torna-se, então, a convivência entre leis internas e a soberania de um Estado com a investigação internacional. O relatório do ACNUDH, inclusive, explicita que a China é signatária de vários acordos na área dos Direitos Humanos e que estaria possivelmente violando esses mesmos textos. O exemplo de Xinjiang torna-se um exemplo de como é nublado distinguir a proteção dos Direitos Humanos das disputas geopolíticas, mas também da dificuldade da comunidade internacional em fiscalizar e cobrar mudanças perante a soberania do Estado.