Na última sexta-feira, dia 4 de fevereiro, foram abertos os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, em Pequim. A capital chinesa tornou-se a primeira cidade da história a receber tanto os Jogos de Verão quanto os de Inverno. A edição, incluindo a abertura, está sendo marcada pela crescente tensão entre o país asiático e os EUA. Um dos aspectos dessa tensão é a acusação feita por Washington de que Pequim promove uma política genocida contra a população uigur, de maioria muçulmana. Seria inevitável a questão uigur estar na cerimônia de abertura, mas um detalhe pouco comentado de dois depois pode ser mais interessante.
Uma das atletas chinesas que acendeu a pira olímpica foi a esquiadora Dinigeer Yilamujiang. Nascida em Altai, na região de Xinjiang, perto da fronteira com a Mongólia, ela tem 20 anos de idade e começou a esquiar aos 12. Como seu nome e seu local de nascimento podem ter denunciado, ela é uigur, um povo túrquico de cerca de 13 milhões de pessoas, mais de 90% vivendo na China. Curiosamente, alguns vestígios arqueológicos colocam as montanhas de Altai como o “berço” da prática do esqui, milhares de anos atrás.
Uigures e boicotes
A China não escolheu a atleta por acaso. Uma cerimônia olímpica é uma ferramenta diplomática, para projetar a imagem desejada de um país e de uma cultura. Alguns podem interpretar uma atleta uigur acendendo a pira olímpica como um sinal de tolerância e pluralismo pelo governo chinês. Outros como um desaforo, uma “piscadela” aos EUA de que Pequim está ciente das acusações e, ainda assim, os uigures seriam parte da China e ponto final. Para Jen Psaki, porta-voz do governo Biden, a escolha chinesa foi uma tentativa de “distrair” o mundo das várias "violações de direitos e genocídio" contra essa população.
A classificação da política chinesa em Xinjiang de genocida é um dos motivos do boicote diplomático aos Jogos Olímpicos promovido pelos EUA. A cerimônia de abertura foi boicotada pelos governos dos EUA, Reino Unido, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca e Estônia. Além desses países, que justificaram seu boicote pelas violações de direitos humanos pelo governo chinês, outros países boicotaram a abertura por motivos diversos.
A Índia boicotou devido às escaramuças fronteiriças recentes, enquanto a Lituânia o fez por estar com relações rompidas com Pequim depois de estabelecer um escritório comercial em Taiwan. Finalmente, o Kosovo apoiou o boicote promovido pelos EUA, embora não tenha relações com a China, que apoia a Sérvia na disputa sobre a independência kosovar. Existe também outro grupo de países que adotou uma solução de “meio termo”. Na prática, boicotaram a abertura, mas sem culpar o governo chinês por isso, afirmando que a ausência de representantes governamentais se daria por causa da pandemia.
Foram eles Áustria, Alemanha, Japão, Letônia, Tchéquia, Países Baixos, Nova Zelândia, Noruega, Eslovênia, Suécia e Suíça. O Japão, por exemplo, foi representado pelo presidente do comitê olímpico local, sem integrantes do gabinete de governo. Como consequência, a cerimônia de abertura foi esvaziada em comparação com cerimônias anteriores. Ainda assim, algumas lideranças internacionais se fizeram presentes, inclusive de países democráticos, como Alberto Fernández, presidente argentino, que aproveitou a viagem para assinar um amplo pacote de investimentos chineses na Argentina.
Também estiveram presentes líderes de países democráticos e de governos ideologicamente à direita, como Guillermo Lasso, do Equador, e Andrzej Duda, presidente da Polônia. Ainda assim, tais presenças foram excepcionais. A maioria dos líderes presentes era de países autoritários, como Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, e, repete-se, a cerimônia foi esvaziada em comparação com a de Pyeongchang, em 2018. O que não necessariamente possui grande impacto, já que o boicote diplomático é basicamente simbólico.
Não ocorreu um boicote esportivo, especialmente por isso ferir grandes interesses econômicos, como já vimos aqui em nosso espaço. Também estiveram presentes líderes cujo cargo exige o máximo de neutralidade, como Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional, e António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas. E veio de Guterres, no domingo, uma frase muito interessante sobre a investigação de um possível genocídio contra a população uigur.
A existência de centros de detenção, por vezes chamados de campos de concentração, em Xinjiang é um fato, reconhecido publicamente pela China ao menos desde 2014. A troca de acusações gira em torno do que esse fato implica. Para os EUA e alguns de seus aliados, esses centros de detenção são locais onde cerca de 1 milhão de pessoas foram detidas de maneira arbitrária, tiveram seu trabalho explorado de forma forçada, sofreram doutrinação política e religiosa, maus tratos e esterilização forçada, e essa política de assimilação forçada seria uma política genocida.
Pequim alega que os campos são centros de educação, onde o fundamentalismo religioso muçulmano é combatido como parte de uma política antiterrorismo. O governo chinês também alega que as pessoas recebem treinamento e qualificação profissional, e que as acusações dos EUA motivam “desestabilizar” a China e fragmentar o país, incentivando um possível nacionalismo uigur. Junto com as detenções em massa, também existem denúncias de destruição de mesquitas, perseguição religiosa e separação forçada de crianças de seus pais.
Acusação e ONU
A acusação formal de genocídio foi feita primeiro pelos EUA, em janeiro de 2021. É claro que esses dois parágrafos são um breve e cru resumo das perspectivas das duas potências envolvidas, e seria impossível esgotar um assunto que rende livros em apenas uma coluna. Esse resumo também não significa a omissão das evidências e denúncias já apresentadas sobre o tema. Existe um outro ponto também: se a minoria que sofre uma perseguição é muçulmana, incluindo repressão religiosa, qual a postura dos países muçulmanos?
Vários deles são governos autoritários, interessados em evitar olhares atentos às suas próprias violações de direitos humanos. Também tem na China um importante parceiro econômico. Por isso, independente de laços religiosos, é conveniente para esses países tomar o lado chinês, seja ele verdadeiro ou não. Os governos de Egito, Arábia Saudita, Paquistão e Emirados Árabes Unidos já afirmaram publicamente que apoiam as políticas chinesas em questões de direitos humanos e “contra o terrorismo”.
Uma missão de diplomatas e políticos paquistaneses chegou a visitar Xinjiang e publicar um relatório legitimando as políticas chinesas. Onde está a linha que separa o interesse da realidade? É difícil afirmar, já que, como sempre lembramos, na política internacional, o interesse é a regra. A pressão contra ou o apoio às políticas chinesas em Xinjiang depende muito mais de conveniência e interesse do que de idealismo ou defesa da verdade. Daí o interesse em uma declaração de Guterres.
Ao se encontrar com Xi Jinping, ele afirmou esperar que uma missão do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, conhecido pela sigla ACNUDH, liderado por Michelle Bachelet, possa ser feita de maneira “crível”, “com credibilidade”. Uma escolha de palavras sutil, mas certeira, focando na independência da agência da ONU e no fato de que visitas anteriores não podem ser tão levadas a sério, dados os interesses envolvidos já citados. Um ótimo exemplo de “para bom entendedor, meia palavra basta”.
Se essa visita acontecerá, não sabemos. Pelo histórico recente, entretanto, com os relatórios do ACNUDH sobre violações de direitos humanos na Venezuela e na Colômbia, pode-se esperar um bom trabalho e, principalmente, a denúncia se esse trabalho for impedido. Em meio às acusações de “politização” dos jogos, Guterres, discretamente, foi direto ao alvo, em uma proposta que pode contribuir para maior transparência de questões humanitárias, embora não necessariamente para concórdia política.
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