Existem cargos e carreiras que devem atender aos interesses de Estado e não poderiam ser submetidos aos loteamentos que atendem interesses de ocasião de governo ou de partido. A maioria dos cidadãos vão concordar com essa frase, restando apenas definir quais cargos e carreiras seriam esses. Alguns vão escolher um rol maior, outros uma categoria mais reduzida, em um saudável debate. Nessa discussão, seria quase unânime pensar que a representação de um país exterior não pode atender ao jogo eleitoral. Ao mesmo tempo, é exatamente isso que está em discussão no Senado brasileiro.
O senador Davi Alcolumbre, ex-presidente da casa, é o autor da Proposta de Emenda à Constituição 34/2021, de outubro de 2021. A PEC propõe “alterar o inciso I do art. 56 da Constituição Federal, para prever que a investidura de parlamentar no cargo de chefe de missão diplomática de caráter permanente não dá ensejo à perda de seu mandato.”. Em outras palavras, permitirá que políticos eleitos chefiem embaixadas brasileiras sem que precisem abrir mão de seus mandatos.
O trâmite da PEC foi atualizado na semana passada, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou o requerimento feito pela senadora Mara Gabrilli para a realização de audiência pública sobre a matéria. Na CCJ, a relatoria é da senadora Daniella Ribeiro, com voto favorável ao texto, que conta com assinaturas de 27 senadores no momento em que a coluna é escrita, a maioria deles integrantes de partidos do chamado “centrão”, o bloco de interesses clientelistas, sem orientação ideológica definida e que busca alianças de ocasião com o executivo do momento.
Alcolumbre e Daniella Ribeiro são dois exemplos de políticos do “centrão”. Ambos são de famílias influentes na política de seus estados, Amapá e Paraíba, respectivamente. Alcolumbre, em vinte anos de carreira política, está em seu terceiro partido, enquanto Ribeiro ficou vinte anos no Partido Progressista até mudar para o Partido Social Democrático de Gilberto Kassab no ano de 2022. Essa breve recapitulação da carreira política de ambos tem apenas um propósito, mostrar de onde vêm essa proposta de emenda e os possíveis interesses nela embutidos.
Interesses
Essa é a pergunta que deve ser feita: a quem interessa essa emenda? Quem deseja que uma embaixada seja loteada como um cargo comissionado e ocupada por um político eleito sem que ele precise abrir mão de seu mandato? Um partido elege um determinado representante para o Senado. Esse mesmo partido recebe, como “agrado” do executivo do momento, uma embaixada para o tal representante.
Enquanto isso, a cadeira no Congresso é ocupada por um suplente, mantendo a linha do eleito que tornou-se embaixador. Soa bastante conveniente, ainda mais em momentos delicados em que um eventual senador esteja envolvido em manchetes desabonadoras. Claro, todo embaixador precisa ser aprovado pelo Legislativo, mas o corporativismo não falaria mais alto, com senadores e deputados votando pelos seus?
Essa é a primeira porta que a PEC abre, a de transformar as embaixadas em mais uma moeda de troca no jogo partidário de Brasília. E, claro, dificilmente algum senador deve ter como destino dos sonhos as embaixadas em Lilongwe ou em Colombo. A briga será por Washington, Roma, Londres e outros postos com o mesmo status e presença no imaginário popular. Participar de jantares com a rainha Elizabeth II ou ter uma audiência com o Papa seriam muito mais interessantes para os senadores.
Ou seja, justamente as embaixadas mais importantes, que representam as relações políticas essenciais para o Estado brasileiro, assim como os mais intensos elos comerciais e econômicos. Essas relações, sejam políticas ou econômicas, seriam potencialmente sequestradas pelos interesses eleitoreiros do embaixador partidário daquele momento. Trazer negócios para o seu estado seria mais importante, assim como enfraquecer um rival partidário ou desafeto político. Uma receita para um desastre.
Pior ainda, um político desinteressado no cotidiano da embaixada, que pense apenas em sua carreira, seus eleitores e sua imunidade, deixaria os diplomatas da representação ainda mais sobrecarregados. Funcionários da carreira diplomática precisariam exercer de fato o cargo que, cerimonialmente, é do ilustre senador, sem a mesma autoridade e precisando passar tudo pelo político.
Diplomatas e preço a ser pago
A segunda porta que essa PEC abre é justamente a do desmonte e enfraquecimento da carreira diplomática. O Brasil possui um amplo programa de formação de diplomatas profissionais desde 1945, que atendeu diferentes governos, mesmo os que não chegaram ao poder de maneira democrática, de diversas matizes ideológicas. Mesmo assim, o atual presidente Jair Bolsonaro já fez críticas a um suposto alinhamento ideológico “de esquerda” dentro do Itamaraty. Críticas infundadas, deixe-se claro.
Talvez o episódio mais conhecido envolvendo o atual governo seja o da possível nomeação do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, para a embaixada em Washington, um dos postos mais importantes da diplomacia brasileira. Essa nomeação não foi adiante, entretanto, outros postos foram ocupados por indicados de fora da carreira diplomática, como a embaixada em Israel, ocupada por um militar. É importante lembrar que o cargo de embaixador é discricionário de nomeação do presidente da república, seja ele quem for.
A nomeação de embaixadores segue lógica parecida nos EUA, como prerrogativa do presidente. Como o país possui uma miríade de representações, como consequência diversas embaixadas são ocupadas por aventureiros, como influenciadores digitais e grandes financiadores de campanhas. No Brasil, políticos, acadêmicos e juristas já ocuparam embaixadas antes, em circunstâncias mais ou menos polêmicas. Um político influente e engajado pode, sim, desempenhar um ótimo papel como embaixador, representando o Estado brasileiro.
Não é disso que se trata essa PEC, vinda diretamente das entranhas do “centrão”. Trata-se de colocar todas as embaixadas do Estado brasileiro no jogo de trocas partidárias. Mais que isso, lotá-las de políticos que, no lugar de cumprirem seus mandatos para que foram eleitos, teriam alguns anos para brincar de diplomata, de maneira confortável, sem precisar abrir mão de seus mandatos. Quem pagaria o preço literal seria o cidadão brasileiro, no curto e no longo prazo.