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A rainha Elizabeth II e o Duque de Edinburgh em visita de Estado à Irlanda, 17 de maio de 2011
A rainha Elizabeth II e o Duque de Edinburgh em visita de Estado à Irlanda, 17 de maio de 2011| Foto: MAXWELLS DUBLIN - IRISH GOVERMENT POOL

O ano de 2021 marca dois aniversários importantes e simbólicos na Irlanda. Nesse caso, em ambos os lados da fronteira que separa a ilha da Irlanda, com a República da Irlanda, independente, de um lado, e a Irlanda do Norte, região integrante do Reino Unido. E as datas não poderiam vir em pior momento, com a retomada de tensões na ilha, derivadas das consequências do Brexit e seu acordo. Expandindo o pensamento além do curto prazo, é possível até testemunharmos a gênese da reunificação da ilha da Irlanda.

Pensando com rigor histórico, seria uma unificação da ilha, já que a Irlanda nunca teve um governo centralizado, que gerisse toda a ilha, de maneira independente. Essa união veio sob o jugo inglês, com a criação do Reino da Irlanda, posteriormente unificado ao Reino Unido, com o perdão da redundância. Voltando ao presente, o acordo pós-Brexit, ao estabelecer uma “fronteira marítima” interna ao Reino Unido, para garantir o livre trânsito entre os dois territórios irlandeses.

Conflito

Esse livre trânsito foi estabelecido como parte do Acordo de Sexta-feira Santa de 1998, que encerrou o período chamado em inglês de Troubles, “Problemas”, a violência sectária entre as comunidades da ilha da Irlanda. Em linhas grosseiras, de um lado os unionistas, ou lealistas, os residentes da Irlanda do Norte que são pró-Londres, a maioria deles protestante e descendente de colonos ingleses. Do outro, os republicanos, ou pró-Irlanda, os irlandeses que favorecem uma unificação, a maioria católicos.

O conflito era marcado por atentados a bomba, brigas generalizadas, assaltos e imóveis ou carros incendiados. Uma guerra entre vizinhos, dentro dos mesmos bairros, com a cidade de Derry sendo o exemplo mais marcante, cortada ao meio pela fronteira. É dessa época que nomes como o IRA, a organização Exército Republicano Irlandês, grupo paramilitar irlandês classificado como terrorista por Londres, tomaram os jornais. Do outro lado, o equivalente ao IRA é a Força Voluntária do Ulster, UVF.

Facilitar o intercâmbio entre vizinhos e aumentar as relações comerciais e culturais foi, então, uma prioridade do acordo, e funcionou. A abertura da fronteira interna na ilha da Irlanda foi a razão da República da Irlanda ter se mantido fora do Espaço Schengen, o espaço comum europeu. Como o Reino Unido ficou de fora, a Irlanda precisava escolher: ou a fronteira da ilha, ou o espaço aberto europeu. Optaram pelo primeiro, por uma questão, também, de paz e de convivência.

Esse cenário, agora, foi por água abaixo. E o Reino Unido precisou, como explicado algumas vezes em nosso espaço, equilibrar duas coisas que se anulam após o Brexit. Ou a fronteira com a Europa, ou a falta de fronteira na Irlanda. Ter os dois era impossível. Como forma de tentar conciliar as duas coisas, Londres estabeleceu a fronteira no mar da Irlanda. Ou seja, o controle alfandegário e migratório será realizado nos portos, em caso de bens ou pessoas que entrem nas ilhas britânicas, mantendo a fronteira da Irlanda aberta.

Unionistas

Esse cenário, entretanto, não agradou os grupos lealistas, e a UVF, junto com outros grupos paramilitares, anunciaram no dia quatro de março que “retiravam o apoio” ao Acordo de Sexta-feira Santa. Ao final do mês. As tensões escalaram quando as autoridades anunciaram que não processariam os 24 parlamentares do Sinn Féin na Irlanda do Norte, por terem comparecido ao funeral de Bobby Storey, violando as restrições de combate ao coronavírus.

O problema é mais profundo. O Sinn Féin, partido pela unificação republicana atuante nas duas Irlandas, é visto como o “partido do IRA”, ou o IRA pós-deposição das armas. E Bobby Storey era um dos principais líderes do IRA, envolvido na elaboração de atentados à bomba, fugas de presos do IRA e porte de armas pesadas. A presença dos parlamentares foi vista como uma afronta, e a violação das ordens sanitárias seria uma maneira legal de punição ao ato, o que frustrou os lealistas.

Do final de março até dez de abril, os lealistas pró-Reino Unido depredaram carros e casas, atacaram viaturas da polícia e ao menos 88 policiais norte-irlandeses ficaram feridos. Muitas das propriedades depredadas eram de residentes católicos, o que dificilmente é uma coincidência. No dia 22 de abril de 2021, um grupo intitulado “Novo IRA” reivindicou uma bomba que falhou em Dungiven.

A cidade de Derry já havia passado por confrontos ano passado, quando do assassinato da jornalista Lyra McKee. A arma do crime já havia sido utilizada em ataques de grupos paramilitares e quatro homens foram presos. Elemento preocupante de todos esses episódios de violência é que muitos dos detidos são adolescentes e jovens, ou seja, pessoas que, supostamente, nasceram e cresceram sob o signo da paz estabelecida em 1998, com a violência sectária herdada de pai para filho.

Em 28 de abril, a primeira-ministra da Irlanda do Norte, do governo regional, Arlene Foster, anunciou sua renúncia, após uma carta dos parlamentares de seu partido pedindo pela saída. Ela é do Partido Unionista, pró-Londres, protestante e ligado ao grupo paramilitar Resistência do Ulster (UR). Ulster é a referência geográfica ao norte da ilha da Irlanda. Eleições estão previstas para maio, em um cenário turbulento, tanto pela política interna quanto, obviamente, pela pandemia.

Também em 2021 o Ulster Bank, um dos maiores da ilha, anunciou que concentraria suas atividades no norte, saindo da República da Irlanda. O banco passou por problemas e foi envolvido num escândalo de hipotecas, porém, a decisão também possui componente político, do contexto irlandês e pós-Brexit. Tais rupturas e tensões, no fim das contas, fortalecem os movimentos pró-Irlanda unificada. Segundo diversas pesquisas eleitorais, hoje, em referendos, a unificação seria aprovada nos dois lados da fronteira.

Laços históricos

Além dos lealistas mais radicais serem minoria, os norte-irlandeses se veem cada vez mais beneficiados pelos elos dentro da ilha do que pelos eventos em Londres. E esse sentimento tomou o protagonismo do debate político por conta do Brexit e também dos eventos na Escócia. A rainha Elizabeth II, recentemente enlutada, entrou no cenário nessa semana de maio, em uma mensagem em vídeo, por ocasião dos cem anos da criação da Irlanda do Norte, com o Tratado de 1921, que encerrou a Guerra de Independência irlandesa.

De vestido verde, a cor de São Patrício e a cor nacional irlandesa, ela pediu pela fraternidade, afirmou que a data é um “lembrete de nossas relações complexas e nossa diversidade”, e declarou que a paz “é mérito das pessoas, dos vizinhos”. Em sua maneira discreta, a rainha quis dizer que a paz não é fruto automático de documentos ou papéis, mas fruto da conduta das pessoas, do comedimento e de aprenderem a conviver. Diversos outros políticos também comentaram esse centenário, claro.

A rainha também lembrou dos dez anos de sua visita de Estado a Dublin, capital da República da Irlanda, em maio de 2011. Foi a primeira, e até agora a única, visita de Estado de um monarca britânico na Irlanda, e marcava os cem anos da última visita de um monarca britânico em Dublin. Jorge V, avô da rainha, visitou a cidade em 1911, quando ainda era parte do Reino Unido e dos domínios britânicos. Relações históricas, sim, mas também delicadas e tênues, que podem ruir em apenas semanas. Esperemos que não.

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