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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Estados Unidos

A ruptura e o futuro do Trumpismo

Apoiadores do presidente americano Donald Trump protestam em frente ao Capitólio, Washington DC., em 6 de janeiro (Foto: ALEX EDELMAN / AFP)

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O dia seis de janeiro de 2021 já é um dia na História dos EUA. Apoiadores de Donald Trump, abastecidos com a retórica agressiva de alguém inconformado com a derrota eleitoral, alimentando teorias da conspiração de uma suposta fraude que não foi provada em mais de sessenta recursos jurídicos, invadiram o Congresso dos EUA para "salvar a América" da contagem de votos do Colégio Eleitoral. Alguns dos integrantes, mais caricatos, viralizaram, pela sua aparência, fazendo parecer com que o episódio não tenha sido violento. O cerne da turba, entretanto, era formado por pessoas vestidas para combate, desejando enforcar o vice-presidente Mike Pence. Cinco pessoas morreram, incluindo um policial, chamado Brian Sicknick, agredido pelos apoiadores de Trump. As imagens correram o mundo e esse dia pode representar um divisor de águas na política dos EUA.

É importante frisar que tudo o que foi escrito nessa introdução é fato. Não é "narrativa", não é "versão da esquerda" ou qualquer sandice do tipo. São os fatos, empíricos e comprováveis. Eram apoiadores de Trump os integrantes do ataque terrorista, não opositores ou "antifa", como alguns, compradores das sandices pró-Trump a qualquer custo, chegaram a alegar. Não há prova alguma de "infiltrados", ao contrário, há prova da mudança de discurso quando do malogro da ação incentivada por Trump, assim como abundam evidências do uso de símbolos e vestimentas de ideologias nazifascistas. Novamente, isso é um fato. Não significa que todo simpatizante de Donald Trump e de seu governo seja um fascista ou um supremacista branco, mas o fato é que essas pessoas estavam lá. Também é fato que a inteligência militar dos EUA classifica, desde a década de 1990, as milícias armadas de extrema-direita como a maior ameaça terrorista doméstica.

E o leitor não precisa acreditar em mim, pode consultar fontes como este artigo de Arie Perliger, então professor em West Point, ou este documento de 2019 do Congresso dos EUA. Retornando aos fatos. O discurso de Trump foi agressivo e incentivou a turba, basta ler as palavras dele e verificar isso. As palavras dele foram movidas pela sua negação da realidade de que sofreu uma derrota eleitoral, mesmo tendo recebido uma quantidade enorme de votos. Também é fato que a campanha de Trump entrou com 67 processos contra resultados eleitorais e não venceu nenhum. Nenhum sequer. É necessário muito apego a um político para achar, por exemplo, que ocorreu uma conspiração anti-Trump na Geórgia, estado tradicionalmente conservador, sob governo republicano ininterrupto desde 2003 e com todos os juízes do supremo tribunal estadual nomeados por republicanos.

Também é fato que Mike Pence era um dos alvos principais, visto como traidor, devido uma incorreta interpretação da lei, acreditando que ele teria poderes, sozinho, para interromper a contagem dos votos. Infelizmente, até lideranças políticas brasileiras, como o caricato chanceler Ernesto Araújo, aderiram a essas alegações infundadas. Outro fato é que a desconfiança do processo eleitoral foi em boa parte causada por desinformação veiculada propositalmente por indivíduos ideologicamente simpáticos a Trump ou afetados por teorias da conspiração como a QAnon. Sendo que a derrota de Trump é perfeitamente e razoavelmente explicável, num cenário que se desenhou por meses, sendo citado aqui no nosso espaço. Não é necessário ginástica retórica nem grandes conspirações mundiais.

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Discurso de fraude

Replicando trechos de coluna de setembro, chamada Um raio-X da disputa entre Trump e Biden: "Em suma, as pesquisas apontam vantagem de Biden, mas uma vantagem numérica no voto popular não necessariamente implica vitória no colégio eleitoral, ainda mais com Trump contando com eleitorado fiel e bem espalhado geograficamente (...) O voto pelo correio, em teoria, beneficia Biden. O eleitor que não levantaria do sofá por ele não precisará mais fazer isso. Isso torna a vantagem numérica dele mais significativa, assim como a rejeição de Trump. Por outro lado, Trump está focando sua campanha justamente nisso, para equilibrar a disputa nos votos pelo correio, chamando a atenção de seus eleitores para que fiquem atentos na via eleitoral de sua região."

Já era sabido que Biden teria a maioria do voto popular e que o voto pelo correio, ampliado em decorrência da pandemia, o favoreceria, já que ele não mexe com as paixões de ninguém, ao contrário de Trump. Quanto mais eleitores, pior para Trump. Dito e feito. Em 2016 ele também teve menos votos individuais do que Hillary. Foi a eleição com maior comparecimento eleitoral desde 1900. As pessoas votaram ou por Trump ou contra Trump, ninguém votou por Biden. Esses são os fatos. Novamente, é o cenário que já se desenhava e que se concretizou, e ele tem motivos para ter acontecido dessa maneira, e precedentes que embasaram esse cenário. Recusar a realidade da derrota é um delírio egocêntrico de Trump que colocou todo seu país em polvorosa.

Diversas lideranças do partido republicano reconheceram a vitória de Joe Biden, assim como várias figuras importantes da direita pelo mundo. O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, por exemplo. Um conservador que é abastecido por um dos mais reconhecidos serviços de inteligência do mundo. E, ainda assim, parabenizou Joe Biden pela vitória dias depois da eleição. Será realmente possível alguma grande conspiração mundial de esquerda para fraudar a eleição de Trump e que Netanyahu não saiba nada? Mais, que ele seja um participante? Bastante improvável, convenhamos.

Depois da ruptura que foi o dia seis, resta perguntar: qual será o futuro do Trumpismo? Hoje, existem duas possibilidades. Uma é ele se tornar a vertente majoritária dentro do partido republicano, contra a resistência de lideranças tradicionais, como a família Bush, e nomes mais moderados, como Marco Rubio. Outra é a formação de uma terceira via nos EUA, similar aos anos 1960, quando George Wallace rompeu com os democratas por não concordar com a lei dos direitos civis e saiu candidato em uma plataforma pró-segregação. Foi uma das poucas vezes que um terceiro candidato levou votos no Colégio Eleitoral. Pouco depois, entretanto, ele foi fagocitado de volta ao sistema bipartidário, ou seja, um "Partido Trump" provavelmente seria uma medida de curto prazo. De qualquer maneira, as coisas não serão como antes.

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