A sigla OPEP, que significa Organização dos Países Exportadores de Petróleo, já causou calafrios no noticiário político brasileiro. Os dois choques do petróleo, na década de 1970, colocaram o mundo na contramão do desenvolvimentismo baseado em empréstimos estrangeiros adotados pelos militares brasileiros. O resultado foi, ainda na década de 1970, aumento galopante da dívida externa e inflação fora de controle, colocada sob rédeas apenas no início da década de 1990.
O Qatar anunciou que sairá da OPEP em 2019. A notícia não gerou tanta repercussão quanto poderia, ou quanto teria ocasionado em outros tempos. Talvez pelo pequeno tamanho do emirado, talvez pela tímida proporção da indústria do petróleo qatari. Os novos caminhos do país merecem atenção, mas, principalmente, o aparente declínio da OPEP como grande articuladora e cartel do petróleo mundial precisa ser olhado com interesse, já que afeta todo o mundo.
A OPEP
A OPEP foi fundada em 1960, em Bagdá, por Iraque, Kuwait, Irã, Arábia Saudita e Venezuela. Seu propósito era criar um “cartel nacional” do petróleo, manobrando os preços do óleo negro para financiar o desenvolvimento interno e projetos de modernização desses países, assim como compras de armamentos. A abordagem de usar os recursos naturais de um país como lastro de seu desenvolvimento, uma política que contém casos de sucesso social, como o da Noruega, e casos de concentração de riqueza e de poder em uma casta política, como nos países do Golfo Pérsico ou no Azerbaijão.
Esse “cartel nacional” agiria contra o cartel empresarial das Sete Irmãs, sete grandes empresas privadas de capital dos EUA ou europeu. Após fusões e compras, as antes sete agora são quatro empresas, também chamadas de “Big Oil” nos EUA, especialmente no contexto dos gastos das empresas em propaganda contra novas formas de energia, mais limpas. Na década de 1960, cerca de 85% do petróleo mundial estava na mão dessas empresas. A OPEP foi, então, uma reação de Estados nacionais, um cartel com o sinal invertido. Hoje o cenário está invertido. Dois terços do petróleo mundial são explorados por empresas estatais, como a Saudi Aramco, as gigantes chinesas, a malaia Petronas e a brasileira Petrobras.
Dos cinco países originais, hoje a OPEP conta com catorze membros, mais o Qatar, ainda por algumas semanas. O recém-chegado ao clube é a República do Congo, enquanto outros países saíram e retornaram, como o Equador, ou continuaram de fora, como a Indonésia. Hoje, entretanto, enquanto a OPEP reúne mais de 80% das reservas comprovadas de petróleo existentes, menos da metade da produção mundial está representada na OPEP. Dos dez maiores produtores de petróleo, metade não integra a organização: EUA e Rússia, os líderes mundiais, Canadá, China e Brasil.
O poder da OPEP de articular o preço do petróleo, hoje, é diminuto. Foi-se o tempo em que tais países descobriram sua arma mais poderosa, seja para o desenvolvimento econômico, seja para pressões geopolíticas, como uma arma de guerra econômica. Em retaliação ao apoio dos EUA a Israel em 1973, o primeiro Choque do Petróleo jogou toda a economia dos EUA e de boa parte do Ocidente no caos. Está relacionada ao fim do padrão de Bretton Woods e da conversibilidade das moedas, manipulações cambiais, aumento do custo de vida e ao declínio da indústria automobilística nos EUA.
Atualmente, os países do Golfo precisam contar com o apoio de Putin e da China para qualquer política minimamente viável de preços. E o “minimamente” é importante pois, se antes a OPEP era um grupo mais ou menos coeso, hoje reúne países tão díspares em questões sociais, políticas e internacionais quanto Venezuela, Gabão e o que restou da Líbia. O óleo de xisto dos EUA e o petróleo canadense que flui pelos oleodutos norte-americanos garantem que a maior economia do mundo pode resistir às pressões da OPEP. O maior rival nesse campo é também a Rússia.
Isso não quer dizer que o preço do petróleo não subirá em breve. O Segundo Choque do petróleo, de 1979, teve como gênese o fechamento do estreito de Ormuz com a Revolução Iraniana e subsequentes crises. As tensões com o Irã e o interesse da Rússia de Putin tornam bastante plausíveis um aumento do preço internacional do barril de petróleo em breve, entretanto, sem o poder que esse preço teve na década de 1970. A ligação entre crises políticas e o preço do barril de petróleo pode ser visto no período da Primavera Árabe, que criou incógnitas na região do Oriente Médio, última vez que o preço passou da barreira dos cem dólares.
O que o Qatar pretende
Uma organização enfraquecida, que não representa todos os maiores produtores do petróleo, cada vez mais tomada pelo dissenso e, ainda por cima, controlada pelo seu principal inimigo do momento. O membro mais influente da OPEP é a Arábia Saudita, terceiro maior produtor de petróleo do mundo, que extrai mais que dez milhões de barris por dia, mais que o dobro do que o quarto colocado, o Irã. O governo saudita, desde o ano passado, adota uma política extremamente hostil contra o vizinho Qatar, ao ponto de buscar isolar literalmente a península, via um canal artificial.
Além disso, o Qatar é, em proporções globais, um tímido produtor de petróleo, com “apenas” seiscentos mil barris por dia, cerca de 2% do total da OPEP. As reservas do país, entretanto, são grandes, especula-se que o dobro das do Brasil; repete-se que isso é especulação, já que esses dados são muito interessantes para serem disponíveis publicamente. Maquiar e esconder os números é a regra nesse caso. Com essa considerável, embora não gigantesca, reserva e produção de petróleo, o Qatar pode, por fora da OPEP, usar o óleo como uma ferramenta de política internacional ao seu gosto.
Sem o compromisso das cotas de produção ou a necessidade de embarcar em embargos e negociações da OPEP, o Qatar pode usar seu óleo em uma política própria para seduzir aliados e apoiadores internacionais, contra a intimidação da vizinha saudita muito maior e mais forte. Acordos petrolíferos de mútuo interesse e com cifras mais estáveis e generosas podem aproximar ainda mais o Qatar da Turquia, que já conta com uma base militar na península, ou dos EUA, que possui sua maior base militar no Oriente Médio em território qatari.
A Índia é outro parceiro potencial. O país foi um dos primeiros a correr ao socorro do Qatar, incluindo o envio de alimentos; importante lembrar que o Qatar é um país minúsculo e desértico, que importa quase tudo que consome, e o fazia por via terrestre, por território saudita. Quase um milhão de indianos residem no Qatar. Principalmente, a Índia é o país com maior déficit de petróleo do mundo. Em outras palavras, é o mais “beberrão” em relação ao que produz, com uma diferença de quase quatro milhões de barris importados ao dia.
O premiê indiano Narendra Modi já visitou o Qatar e foi recebido pela família Al Thani, monarcas e, na prática, donos do país árabe. Cerca de 10% de toda a exportação de petróleo qatari, mesmo antes da crise, era para a Índia. Ao sair da OPEP, o Qatar terá mais autonomia para usar o petróleo como uma arma para cortejar potenciais aliados e contrabalancear os sauditas. Outra razão para a saída, esse sendo o motivo oficial segundo o governo qatari, é que o país irá focar na indústria e na exportação do gás natural liquefeito.
É claro que as razões oficiais nunca serão as únicas; muitas vezes, sequer são reais. Nesse caso, em complemento às razões geopolíticas extra-oficiais explicadas aqui, a indústria do gás é sim um elemento importante. Se a produção qatari de petróleo é tímida, o país é o quarto maior produtor de gás natural do mundo, com a terceira maior reserva. O governo pretende, até 2022, dobrar a sua atual produção, ficando atrás apenas de Rússia e dos EUA. Quando se compara o tamanho desses países no mapa, percebe-se a dimensão desse feito.
Além disso, o Qatar pretende investir mundialmente no uso do gás natural. Claro, também para benefícios próprios, mas, com as mudanças climáticas e as transições para novas fontes de energia, o gás natural torna-se cada vez mais interessante. O financiamento qatari, especialmente em países em desenvolvimento, para maior uso do gás natural vai aumentar a demanda pelo produto, uma lógica muito mais de livre mercado do que de cartel, como no caso do petróleo, seja esse cartel estatal, seja privado.
Como cereja no bolo, legisladores dos EUA querem tirar da gaveta o projeto No Oil Producing and Exporting Cartels Act (NOPEC). A tradução literal é “Ato Não aos cartéis de produção e exportação de petróleo”, entretanto, sua sigla é um trocadilho com “no” (não) e OPEC, como a sigla da OPEP é grafada em inglês. Os alvos do projeto são os sauditas e a Rússia; recentemente, Donald Trump reclamou dos sauditas não terem aumentado a produção, abaixando o preço. Ou seja, a OPEP pode ser, em breve, alvo de pressões do governo dos EUA, e o Qatar terá se distanciado dessa briga.