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Na última quarta-feira, dia catorze, o deputado dos EUA Mike Turner, do Partido Republicano, presidente do comitê de inteligência da Câmara, emitiu publicamente um críptico alerta sobre uma "séria ameaça à segurança nacional". A imprensa nos EUA entrou em polvorosa e as especulações sobre o motivo do alerta rapidamente vieram com a informação “vazada” de que a Rússia teria colocado um dispositivo nuclear em órbita. Além de ser necessário analisar o que isso pode significar, essa notícia pode ter relação indireta com o bilionário da tecnologia Elon Musk.
De acordo com John Kirby, porta-voz da Casa Branca, a Rússia estaria desenvolvendo um dispositivo anti-satélite de matriz nuclear que não seria um explosivo, uma ogiva propriamente dita, mas um dispositivo feito para interferir ou anular os componentes eletrônicos de satélites em órbita. Isso resultaria em prejuízo às capacidades dos EUA de comunicação, vigilância e o comando e controle, chamado de C2 na literatura especializada. Detalhes de como esse dispositivo funcionaria obviamente não foram dados ou são inexistentes.
Segundo o Tratado do Espaço Exterior, assinado durante a Guerra Fria, em 1967, sob proposta justamente dos EUA e da então União Soviética, proíbe armas de destruição em massa no espaço. Também limita o uso de todos os corpos celestes apenas para fins pacíficos, estabelece a liberdade para que toda nação possa explorar e utilizar o espaço exterior e proíbe a reivindicação de soberania por um Estado sobre o espaço exterior ou qualquer corpo celeste. EUA, Rússia, Brasil e outros 111 países ratificaram o tratado e deveriam cumpri-lo.
Pacote militar
O governo russo negou a possibilidade e acusou o governo dos EUA de "fabricação maliciosa". Independente de sua existência, uma coisa é certa. O timing do anúncio certamente não foi coincidência, com os votos no Congresso sobre os pacotes de dezenas de bilhões de dólares em ajuda militar para Ucrânia, Israel e Taiwan. Ter uma nova “super ameaça” militar na manga é, com certeza, uma ótima maneira de pressionar os congressistas a votar pelos gastos militares, especialmente com o argumento de que a Rússia e sua “super arma” precisa ser detida na Ucrânia.
Exemplo famoso, talvez infame, é o exercício militar Cope India 04, entre as forças aéreas dos EUA e da Índia. Na ocasião, o debate sobre o orçamento para os novos caças dos EUA, os F-22, estava em polvorosa no Congresso. As forças dos EUA foram totalmente derrotadas no exercício militar e a “surra” foi usada como argumento para justificar a suposta necessidade de um novo caça. Hoje, sabemos que os militares dos EUA intencionalmente “tiraram o pé” no exercício militar, justamente para gerar manchetes alarmistas sobre um suposto declínio do poderio aéreo dos EUA.
E se a nova super arma russa for uma realidade? Ela é indiretamente consequência de uma das empresas de Elon Musk. Em 2024, é óbvio que a internet não é algo supérfluo, mas parte essencial das infraestruturas produtivas nacionais e imprescindível para a comunicação. A ciberguerra é tão guerra e é tão importante quanto a infantaria, a mais antiga das armas. Isso inclui também a proteção das capacidades soberanas de comunicação e de conexão de um país. Um exemplo que talvez ilustra bem esse ponto é a maneira do leitor se orientar em um veículo.
Para chegar em um endereço usando um veículo, a maioria dos brasileiros usa algum aplicativo de localização e geoposicionamento. A imensa maioria desses aplicativos utilizados no mercado brasileiro usa os serviços dos satélites do Global Positioning System, conhecido pela sigla GPS, que se tornou até sinônimo de aplicativo de localização. “Vou colocar o endereço aqui no GPS”. A questão é que o GPS é a rede de satélites desenvolvida, mantida e usada pelo governo dos EUA. As principais potências possuem os seus próprios sistemas de satélites de localização e geoposicionamento.
Guerra no espaço
A Rússia possui o Glonass, a União Europeia possui o Galileo, a China o Beidou e a Índia está implementando o Navic. Por qual motivo? Caso uma dessas potências entre em um conflito ou em uma crise, ela não depende dos serviços e dos satélites de outra potência. Caso os EUA invadam um país, uma de suas primeiras ações será limitar o uso do GPS naquele país invadido, em um exemplo hipotético que se aplica a todas as potências. A mesma acontece com as conexões de internet em geral, com a internet global conectada por vasta rede de cabos submarinos.
Ao mesmo tempo, alguns países possuem servidores emergenciais soberanos, podendo manter sua internet mesmo caso ocorra um acidente na rede de cabos submarinos ou sofram um ciberataque de um ator hostil. Em 2008, ao invadir a Geórgia, uma das primeiras ações da Rússia foi causar um apagão nas telecomunicações do país invadido. Repetiu a ação em 2022, ao invadir a Ucrânia, e, por alguns dias, teve sucesso. Até o governo dos EUA determinar o uso da empresa Starlink de Elon Musk, fornecendo o uso de internet via satélite para tanto civis quanto as forças militares ucranianas.
O uso do Starlink pelos ucranianos é custeado pelo governo dos EUA e permite a continuidade de operações de guerra, incluindo usos sofisticados, como os ataques com drones navais. Como a Rússia vai infligir um apagão nessas comunicações ucranianas? É simplesmente impossível. Surge, então, a necessidade militar de desativar uma constelação de satélites. A ideia de destruir um satélite em órbita não é nova. Os EUA testaram já nos anos 1960 mísseis antissatélite, desenvolvendo os primeiros nos anos 1980 e, hoje, possuem munições desse tipo em seu arsenal.
Destruir um satélite em órbita, entretanto, não é desejável. A nuvem de destroços causaria mais problemas, afetando o funcionamento inclusive de equipamentos próprios. Os satélites Starlink, possuem ainda a característica de serem muito pequenos. Entra em campo a hipótese da “super arma” russa, um dispositivo nuclear que gera energia e emite um pulso eletromagnético, conhecido pela sigla em inglês EMP, que queima sensores e componentes eletrônicos, sem gerar destroços perigosos em órbita. Mais uma vez, aspectos técnicos são obviamente omitidos do público.
Caso a Rússia esteja mesmo desenvolvendo esse equipamento, resta ver qual será a argumentação jurídica para alegar que o tratado de 1967 não está sendo violado. Possivelmente, será dito que se trata de um equipamento defensivo ou, então, de arma convencional, sem capacidade de destruição em massa. Mais preocupante, entretanto, é a porta que essa nova arma pode abrir, de uma corrida armamentista em órbita, coisa tão assustadora que foi justamente o que motivou o citado tratado, assinado apenas cinco anos depois da Crise dos Mísseis de Cuba e nunca violado. Por enquanto.
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Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise