O uso de gás natural pela União Europeia continua sendo um importante dilema no contexto da invasão russa da Ucrânia. Foi quase com essas palavras que abrimos a coluna do dia 25 de março aqui em nosso espaço, intitulada “O gás natural russo e a guerra energética da Europa”. Passados praticamente quatro meses daquele texto, talvez seja hora de revisitá-lo, especialmente em uma semana bastante movimentada em relação ao tema.
Naquela ocasião, lembramos que os Estados são movidos por interesses, embora, por vezes, alegam justificativas morais para suas decisões. Especialmente no caso de países que são democracias liberais, onde o convencimento do eleitorado é necessário para a manutenção do governo que tomou aquela decisão. A melhor maneira de justificar um eventual aumento ou racionamento de gás, então, é alegar que é a “coisa certa” devido aos atos da Rússia e o histórico do país no que concerne aos direitos humanos.
Em meio aos números do consumo europeu de gás natural, também mencionamos naquele texto que Qatar, Azerbaijão e Argélia despontavam como os principais candidatos ao fornecimento de gás para a União Europeia, substituindo a Rússia. Citamos o fato de que, no final de março, a Alemanha e o Qatar assinaram um acordo para o fornecimento de gás natural. A monarquia absolutista árabe é dona da terceira maior reserva de gás do mundo, e briga pelo segundo lugar no ranking dos exportadores.
Contratos e acordos
Foram justamente esses países citados os protagonistas do noticiário energético nessa semana. Na última terça-feira, dia 19, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, recebeu o demissionário primeiro-ministro italiano Mario Draghi em Argel. Os dois países assinaram um acordo de quatro bilhões de euros para investimentos italianos na indústria energética argelina, parte de um pacote de quinze acordos em diversas áreas.
Draghi afirmou que, hoje, a Argélia é o maior fornecedor de gás para a Itália, e a estatal argelina Sonatrach anunciou que fornecerá quatro bilhões de metros cúbicos de gás natural para os italianos. Ao final de 2021, a Itália importava 45% de seu gás da Rússia. No mesmo dia, o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, recebeu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para a assinatura de acordos em Baku.
A ideia é dobrar as importações europeias de gás natural azeri para pelo menos 20 bilhões de metros cúbicos por ano até 2027. Segundo von der Leyen, o acordo “ajudará a compensar os cortes no fornecimento de gás russo e contribuirá significativamente para a segurança energética da Europa”. Ainda em acordos energéticos, e também no mesmo dia, Emmanuel Macron recebeu o sheik Mohamed bin Zayed al-Nahyan, dos Emirados Árabes Unidos, em Paris, para a assinatura de diversos acordos de cooperação.
Também deve-se destacar que, nas últimas semanas, diversos outros projetos, voltados ao longo prazo, começaram a ser ventilados e estudados. Fornecimento de gás natural por Angola e a construção de um gasoduto trans-saariano conectando a Nigéria à Europa são talvez os principais exemplos. A União Europeia, então, como previsto, se movimenta para substituir o suprimento energético russo por outros fornecedores.
A questão é: e a justificativa dos direitos humanos, valorização da democracia e da transparência? O Qatar é uma monarquia absolutista que não tem rei, tem dono, tal como os emirados que compõem os EAU. A Argélia é uma ditadura militar desde sua fundação, com variados graus de autoritarismo no passar das décadas, mas longe de ser uma democracia, especialmente desde 2011. Dizer que Ilham Aliyev é o presidente do Azerbaijão é um eufemismo, ele é um ditador que herdou o poder de seu pai em 2003. Heydar Aliyev, por sua vez, assumiu o cargo em 1993.
Angola, embora esteja passando por um processo de abertura desde a renúncia de José Eduardo dos Santos, em 2017, também não é uma democracia. Dos países citados, a Nigéria é o mais “promissor”, mas ainda é marcada pelo autoritarismo herdado das recentes ditaduras militares e decorrente do contexto dos conflitos internos, tanto em Biafra, no sul, quanto contra jihadistas, ao norte.
Ameaças
No fundo, as alegações de valorizar a democracia ou os direitos humanos não sobrevivem quando comparadas com as necessidades energéticas ou os interesses essenciais dos Estados. Mais importante do que serem ou não democracias é o fato desses países não serem interpretados como ameaças para a Europa, como a Rússia é interpretada, sendo uma potência em diversos quesitos, especialmente nuclear.
Comprar gás natural russo tornou-se sinônimo de fornecer dinheiro para um país que vai usar essas divisas para manter sua máquina militar que está sendo utilizada em uma guerra dentro da Europa, que cria refugiados europeus e que pode, em última instância, se voltar contra a própria União Europeia.
Se o Azerbaijão usar as divisas decorrentes de venda de gás para a Europa para invadir a Armênia, ou a Argélia usar para reprimir a população jovem que exige mudanças, ou os EAU comprarem bombas para usar no Iêmen ou caças para rivalizar com o Irã, bem, “azar”, “acontece”, “que seja”. Teremos notícias tristes, notas de repúdio, mas não serão uma ameaça direta para a União Europeia, apenas guerras distantes.
Quando von der Leyen critica a Rússia por usar suas exportações energéticas “como armas”, usando um neologismo no idioma inglês, weaponization, é também disso que ela está falando, não apenas das ameaças russas de interromper o fornecimento de gás para a Europa em represália contra as sanções. No fundo, não é necessariamente a democracia que importa, mas o tamanho da ameaça contra o bom e velho interesse, que sempre está em primeiro lugar.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink
Deixe sua opinião