Os governos de Armênia e Azerbaijão anunciaram mais um acordo para a guerra no Cáucaso. Esta coluna será sobre eventos em marcha, o que implica riscos para a precisão do texto, que pode ser confrontado com novos desdobramentos. Ainda assim, é importante olhar o que o acordo determina, quais os desejos de cada um dos atores e como isso afeta os interesses e as relações de outros atores, em um complicado tabuleiro regional.
O conflito em Nagorno-Karabakh foi resumidamente explicado aqui nesse espaço cerca de um mês atrás. Em suma, territórios historicamente importantes tanto para armênios quanto para azeris estão em disputa desde o início do século XX e retomada com a dissolução da União Soviética. Desse conflito resulta o controle armênio sobre sete distritos do Azerbaijão e a criação da República de Artsakh no território de Nagorno-Karabakh, entidade de facto autônoma em território internacionalmente reconhecido como do Azerbaijão.
Isso se dá pelo fato da maioria da população local ser armênia, com a república sendo praticamente uma extensão da Armênia. Ao acordarem o cessar de hostilidades, foi determinado também o retorno ao controle azeri dos sete distritos ao redor da região de Nagorno-Karabakh. A República de Artsakh continuará existindo em suas fronteiras da linha de controle. Dezenas de milhares de azeris deslocados pelo conflito na década de 1990 poderão retornar. Uma força de paz russa de dois mil militares terá um mandato mínimo de cinco anos, renovável por outros cinco, para proteger os corredores terrestres da região.
Um existe entre a Armênia e a região de Nagorno-Karabakh, e o outro será criado unindo as duas partes do Azerbaijão separadas por uma faixa de território armênio, com o enclave de Nakhichevan isolado. As forças russas, inclusive, já estariam na fronteira e prontas para serem deslocadas ao território. O acordo foi anunciado pelo premiê armênio, Nikol Pashinyan, como uma “decisão difícil” e uma “dor inenarrável”. Não é surpreendente que parte considerável da população armênia recebeu o anúncio como uma derrota.
Manifestantes invadiram o parlamento, exigem a renúncia do premiê e o orador da casa foi espancado.No Azerbaijão, o acordo foi recebido como uma vitória e o ditador do país, Ilham Aliyev, proferiu um discurso provocativo de triunfo. “Pashinyan não está assinando o acordo porque ele quer, mas porque nós o forçamos”. A maioria dos países que se pronunciou sobre o acordo o fez em tom diplomático, falando em bases para a paz, exceção à Turquia, aliada dos azeris, que deu parabéns ao governo de Baku.
Curiosamente, o acordo pode ser racionalizado como um cumprimento de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas formuladas na década de 1990, durante o primeiro conflito, que determinavam a retirada dos distritos azeris ocupados. Outra resolução, de 2008, reforçou esse pedido. Essa, entretanto, foi da Assembleia Geral, logo, não possui poder legal vinculante.
Ganhos e perdas
Esses são os fatos, mas o que eles podem significar? Primeiro, sobre o conflito propriamente dito, ele foi claramente iniciado e planejado pelo Azerbaijão, que investiu pesadamente nas suas forças armadas na última década. É necessário ser muito ingênuo ou emocionalmente envolvido para aceitar a interpretação de que o conflito foi decorrente de meras escaramuças localizadas que escalonaram. Uma ofensiva quase ininterrupta de dois meses no terreno do Cáucaso não é fruto de circunstâncias, mas de planejamento e, especialmente, de intenção.
Outro ponto é que essa intenção não foi motivada apenas pela revanche dos conflitos anteriores e pelo estado de tensão entre os dois países, mas também para mudar o foco do debate interno azeri. Para longe da crise econômica e do desgaste de um governo cada vez mais autoritário, uma virtual dinastia familiar que governa desde o fim da URSS. Situação parecida em Ancara, que expande cada vez mais sua influência por toda a região, acompanhando os cada vez maiores problemas econômicos que a Turquia enfrenta.
Inflação, aumento do desemprego, pandemia, problemas da indústria dos hidrocarbonetos? Tudo bem, glórias militares estão na ordem do dia, com uma sofisticada máquina de propaganda do Azerbaijão, transmitindo seus militares quase como um reality show e criando vídeos de recrutamento dignos dos tempos áureos da MTV. A vitória militar, então, faz do Azerbaijão uma “potência satisfeita”, usando as palavras de Bismarck?
Longe disso. Primeiro, o Azerbaijão é um “gigante com pés de barro”. Essa aventura militar cobrará um custo econômico desproporcional num futuro próximo, o que pode resultar em tensões internas e desgaste do governo. Além disso, o atual acordo mantém abertas duas brechas para retomadas de hostilidades e tensões. Uma é o direito de retorno dos cidadãos azeris aos territórios antes ocupados. Essas pessoas possuem esse direito, sim, a questão é que esse processo certamente será acompanhado de expulsões de armênios e destruição de uma identidade para a imposição de outra. Apenas a manutenção do ciclo.
A outra brecha é a posse da cidade histórica de Shusha, tomada pelo exército do Azerbaijão e transferida pelos termos do acordo. A distância da cidade para a capital de Artsakh, Stepanakert, é de menos de vinte quilômetros, e Shusha fica numa localização de maior altitude, permitindo um controle estratégico de suas cercanias e deixando a capital extremamente vulnerável. Somado controle de Aghdam, do outro lado da capital, a cidade está cercada. Uma vantagem muito tentadora para o Azerbaijão no futuro.
Posição da Armênia
Falando em futuro, do lado armênio, é sem dúvida uma derrota que terá muitas repercussões no futuro próximo. Desde uma crise no governo, com o premiê chamado aos gritos de “traidor”, até uma reavaliação de toda a estrutura de defesa do país. A questão é que a Armênia possui menos de três milhões de habitantes com um PIB de pouco mais de treze bilhões de dólares, enquanto seus rivais azeris contam com mais de três vezes ambos os números. Com menos recursos, a Armênia precisa ter melhor liderança e coordenação.
Principalmente, a Armênia sofre com isolamento regional. De suas quatro fronteiras, a única estável é a com o Irã. Ao leste está o Azerbaijão, ao oeste a Turquia, ao norte a Geórgia, com relações entre altos e baixos. Os georgianos, inclusive, atenderam pedido de Baku para não deixar seu espaço aéreo aberto. O único aliado armênio é a Rússia. Claro, é o peso mais pesado de todos esses, mas não é um país vizinho. O armamento russo que chegava na Armênia tinha que vir por rotas iranianas.
E o atual premiê armênio não é exatamente um grande amigo russo, ao contrário de antecessores. Isso permite duas especulações. Putin foi mais leniente com a ofensiva azeri para provar a importância russa ao governo armênio? Ou o governo armênio resistiu em invocar seus aliados russos devido questões partidárias internas, sacrificando o Estado em prol do governo? O fato é que a Armênia, sozinha, não conseguirá resistir aos seus vizinhos numa guerra total e aberta.
Além das relações com a Rússia, o governo armênio precisa conseguir canalizar os recursos e o apoio da diáspora armênia pelo mundo. E também cultivar mais alguma aliança regional. Nesse caso, outras duas possibilidades acenam ao governo armênio, em um emaranhado complicado e contraditório de relações da região. A primeira delas é o Irã, com quem a Armênia já mantém boas relações.
Além da vantagem de ter um aliado fronteiriço, o Irã possui considerável poderio militar; rivaliza com a Turquia na guerra na Síria e em relação aos curdos; e possui histórico complicado de relações com o vizinho Azerbaijão, um dia parte do império persa. Por outro lado, o Irã já teve períodos de boas relações com a Turquia, unidos pela rivalidade com os árabes, e com o Azerbaijão, outro país onde a maioria da população é xiita. Ou seja, o Irã está longe de ser um inimigo figadal do Azerbaijão e da Turquia, com dúvidas sobre a viabilidade de uma aliança perene.
Armênia e Israel
Se uma aliança com o Irã é explicada em fenômenos recentes e complicada no longo prazo, o fenômeno inverso ocorre nas relações entre Armênia e Israel. Como o historiador israelense Eldad Ben Aharon apontou em texto recente, armênios e israelenses possuem tudo para serem “aliados naturais”. Laços históricos de dois mil anos, com comunidades armênias em Israel e judaicas na Armênia. Duas nacionalidades que lidam com a memória dolorida de serem vítimas de um genocídio. Dois Estados em situação de hostilidade com seus vizinhos quando de seu estabelecimento.
Após a dissolução da URSS, entretanto, as relações entre Israel e Turquia estavam em alta. Não compensava aborrecer Ancara para se aproximar de Yerevan, ainda mais com os turcos fazendo parte das conversas para encerrar o conflito com a Palestina. Turquia e Azerbaijão eram dos poucos países de maioria muçulmana com relações normalizadas com Israel, além de fornecedores de hidrocarbonetos, destino de investimentos e compradores de equipamento bélico. No Azerbaijão também há uma antiga comunidade judaica. Ofereciam muito mais aos israelenses do que os armênios.
Essa situação se mantém, de certo modo. No final de setembro, a Armênia convocou seu embaixador em Tel Aviv para consultas, devido às imagens mostrando armamento israelense em uso pelos azeris, especialmente drones. Voos entre Baku e Tel Aviv foram frequentes durante a guerra, e dificilmente carregavam turistas durante uma pandemia. A carga desses aviões é bem óbvia.
Por outro lado, as relações entre Israel e a Turquia estão azedas, e Ancara financia e arma milícias extremistas que operam na Síria, na Líbia e no Cáucaso, um fanatismo muito mais ameaçador aos israelenses. Hoje, Israel conta com relações menos tensas com outros países de maioria muçulmana, e é menos dependente de poucos fornecedores energéticos. Finalmente, ter um aliado na cercania iraniana ao norte seria interessante.
É improvável que Armênia e Israel tornem-se “melhores amigos” do dia para a noite. O ponto é que os armênios precisam de melhor liderança e expandir suas redes políticas, enquanto os azeris recuperam fôlego temendo a data em que a conta econômica da guerra vai chegar. Até lá, a Rússia vai bancar o “adulto na sala”, enquanto a Turquia esfrega as mãos pensando nas aventuras fronteiriças. De qualquer maneira, ao vencedor as batatas e, por hoje, o vitorioso é o Azerbaijão.
Para o leitor que se interessar em manter-se atualizado sobre a situação, o historiador Heitor Loureiro é especialista em assuntos armênios e constantemente comenta a política do país em seu perfil no Twitter, @doutorheitor.
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