O cruzador russo Moskva (“Moscou”) jaz no fundo do Mar Negro. Isso foi confirmado pelo Ministério da Defesa da Rússia no último dia 14 de abril. Existe uma disputa de narrativas entre russos e ucranianos sobre como se deu o afundamento, e algumas circunstâncias e detalhes do evento ainda são incertos. O que pode ser dito com certeza é que a perda do navio é, independentemente da versão, um duro golpe no prestígio militar da Rússia.
O Moskva não era um “barquinho” qualquer. Com quase 13 mil toneladas de deslocamento, era um dos maiores navios de guerra do mundo, excluídos os porta-aviões – especialmente os porta-aviões nucleares dos EUA, que seriam a “presa” do navio quando foi projetado no fim da década de 1970. Para isso, contava com imensos tubos lançadores de mísseis de cruzeiro antinavio, característica de sua silhueta.
O projeto original da classe, chamada em russo de Atlant, previa dez navios, em um vasto programa de rearmamento de superfície da marinha soviética, que, até aquele momento, priorizava submarinos, com melhor relação custo-benefício. Problemas econômicos e a dissolução soviética reduziram o projeto para quatro navios. Três foram concluídos e o quarto casco está até hoje incompleto, no porto de Mykolaiv, na Ucrânia, proprietária do navio inconcluso.
O Moskva não era um “barquinho” qualquer. Com quase 13 mil toneladas de deslocamento, era um dos maiores navios de guerra do mundo, excluídos os porta-aviões
Dos três concluídos, cada um servia em uma frota diferente. O Varyag é a nau-capitânia da Frota do Pacífico, o Ustinov está na frota do Ártico e o Moskva era a nau-capitânia da Frota do Mar Negro. A Rússia perdeu a nau-capitânia de uma frota em uma guerra contra um país que praticamente não possuía meios navais ao início do conflito. A designação de nau-capitânia não é uma perda apenas simbólica, mas também operacional, já que esse navio costuma ser o responsável pela comunicação entre os diferentes meios da frota.
Afundamento ou acidente
Ainda não estão confirmadas as circunstâncias do afundamento no momento em que a coluna é escrita. Imagens podem ser publicadas e mostrarem o que realmente aconteceu. No momento, podemos apenas especular os cenários possíveis. Mesmo sob o risco de ficar “obsoleta”, entretanto, a coluna se justifica, pelo impacto que a perda representa. No dia 13, Maksym Marchenko, governador de Odessa, principal porto ucraniano, afirmou que seu país atingiu o cruzador com dois mísseis antinavio modelo Neptune, produzidos localmente.
Os ucranianos teriam conseguido efetuar os disparos a partir de terra utilizando um drone como “isca” para engajar o navio. Ao ser atingido, o cruzador pegou fogo e enviou sinais de emergência via rádio. As mensagens, inclusive, foram captadas também por radioamadores e, dentre os navios que supostamente convergiram para acudir a tripulação, estaria um navio civil romeno.
Já os russos alegam que um incêndio que começou acidentalmente no navio atingiu o paiol, onde ficam armazenados mísseis e munições. Isso causou uma explosão, forçando o navio a enviar os sinais de emergência. Segundo o Ministério da Defesa russo, toda a tripulação foi evacuada e o navio afundou enquanto era rebocado de volta à Crimeia, devido às condições de navegação e meteorológicas.
Como possíveis evidências da versão ucraniana dos eventos estão o fato de que, no dia anterior, as autoridades russas postaram nas redes sociais um vídeo de uma fragata engajando um drone no Mar Negro. Possivelmente para verificar o tempo de resposta e os procedimentos navais russos, como ensaio do uso de drones como “isca” para o alvo mais cobiçado, o Moskva. Também existe o fato de que imagens de satélite mostram os navios russos se afastando da costa após o afundamento do Moskva.
Por outro lado, não é totalmente impossível um acidente desse tipo. Bastante improvável, sim, mas não impossível. E, de fato, as condições meteorológicas no Mar Negro estavam longe de serem ótimas, com ventos fortes, águas agitadas e céu nublado. Nos EUA, a última vez que um navio capital foi perdido para um evento do tipo foi em 2020, com o USS Bonhomme Richard. Posteriormente foi alegado que o incêndio foi intencional, embora os eventuais motivos não tenham sido publicados.
Especulações
É possível que a versão russa para os eventos seja apenas a criação de uma narrativa para amenizar a perda e evitar o reconhecimento de uma vitória militar ucraniana, realizada de maneira bem engenhosa. Existe também a possibilidade de que o incêndio acidental tenha sido detectado pelos ucranianos, que teriam então reivindicado um suposto ataque apenas para fins de propaganda. Novamente, apenas novas e melhores imagens podem comprovar o que, e como, aconteceu.
Não é totalmente impossível que o Moskva tenha afundado graças a um acidente. Bastante improvável, sim, mas não impossível
Podemos fazer outra especulação. A Ucrânia alega ter utilizado dois mísseis de produção local, uma versão modernizada ucraniana de um míssil antinavio soviético da década de 1980. Isso é perfeitamente plausível. Por outro lado, no início da semana, o premiê do Reino Unido, Boris Johnson, visitou Kiev, anunciando mais um pacote de auxílio militar. Muito se comentou da possibilidade de os britânicos fornecerem mísseis antinavio aos ucranianos, justamente para a defesa de Odessa.
Os ucranianos podem, então, ter utilizado algum equipamento fornecido pelos britânicos, e alegado o uso de armas produzidas localmente para evitar uma escalada na retórica da guerra. A Rússia poderia responsabilizar Londres pelo afundamento. Também não se pode, nem se deve, descartar a cooperação de inteligência entre os aliados ocidentais e os ucranianos, fornecendo informações sobre as posições dos navios, por exemplo.
Em suma, o prestígio militar russo está entre a incompetência de ter a nau-capitânia do Mar Negro afundada por mísseis lançados de terra, por um país sem marinha viável, usando um drone como isca, ou a negligência de uma explosão acidental no paiol ter levado ao afundamento durante uma tentativa de operação de reboque. Outro impacto da perda é o fato de que não se trata de algo facilmente varrido para debaixo do tapete.
Não é como um helicóptero ou um carro de combate, que são contados nas casas de dezenas e centenas. Não será fácil esconder do público interno a perda de um navio desse tamanho e importância. O navio tinha uma tripulação prevista de 510 militares e não se sabe o paradeiro total dos tripulantes, quantos morreram ou foram resgatados. Não é um número pequeno de pessoas.
História naval e propaganda
Durante a Guerra das Malvinas, por exemplo, o cruzador argentino General Belgrano foi afundado e 323 militares morreram, quase metade das perdas argentinas em toda a guerra. Caso confirmado que o afundamento foi devido uma ação militar ucraniana, seria o maior navio afundado em combate desde a Segunda Guerra Mundial. O navio também não se trata de “sucata”. Apesar de ser um projeto dos anos 1970, os navios da classe passaram por duas rodadas de intensa modernização nos anos 2000.
Alguns analistas militares russos afirmam que o navio já era antigo e que sua perda, do ponto de vista militar, não seria tão grave. O livro branco do projeto de modernização da marinha russa, entretanto, previa que os navios da classe ficariam em serviço ao menos até 2030, depois de modernizados. Para agravar a situação russa, o navio não pode ser substituído no atual teatro de guerra, já que a Turquia fechou os estreitos para navios beligerantes que não sejam baseados no Mar Negro.
O prestígio militar russo está entre a incompetência de ter a nau-capitânia do Mar Negro afundada por mísseis lançados de terra, por um país sem marinha viável, ou a negligência de uma explosão acidental no paiol ter levado ao afundamento
E claro que, dentre todos os golpes mencionados no prestígio e na moral russa, não se pode esquecer da vitória da propaganda ucraniana. No início da guerra repercutiu bastante o episódio envolvendo a Ilha da Serpente, no Mar Negro, quando uma guarnição ucraniana respondeu no rádio dizendo “navio de guerra russo, vá se f****”. O episódio se tornou um slogan, com a frase em cartazes em manifestações pela Europa, e retratado em um novo selo postal ucraniano. Pois bem, o navio russo daquele episódio era justamente o Moskva.
É curioso como a história recente russa é marcada por episódios envolvendo navios capitais. O cruzador Aurora, ancorado em São Petersburgo, efetuou os disparos que iniciaram a Revolução de Outubro de 1917. Anos antes, em 1905, o motim no encouraçado Potemkin foi um dos eventos mais marcantes da revolução daquele ano, que impôs uma Constituição que limitava o poder do czar. Revolução essa deflagrada com a humilhante derrota perante o Japão, vitorioso na guerra de 1905 após a batalha naval de Tsushima.
Claro, não é uma comparação direta do afundamento do Moskva com uma das mais decisivas batalhas navais da história recente, até por não sabermos exatamente em quais circunstâncias se deu essa perda, especialmente sobre a eventual perda em vidas. O que podemos afirmar é que é uma perda notável, tanto militar, quanto simbólica e de propaganda, em uma guerra que se torna cada vez mais custosa e arrastada para a Rússia.
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