Em meio a uma suposta “nova Guerra Fria” entre EUA e China, a União Europeia busca se projetar como uma terceira opção para os países latino-americanos. Na segunda e terça-feira (17 e 18), foi realizada em Bruxelas a terceira cúpula entre a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a Celac, e a UE. Como resultado, dezenas de bilhões de euros em investimentos europeus foram acordados, o que é uma boa notícia não apenas para a América Latina, mas também para os europeus.
A cúpula reuniu representantes de 60 países, mais de um quarto de todos os Estados internacionalmente reconhecidos, sendo 33 da Celac e 27 europeus. A Celac é resultado de um dilema do pan-americanismo que remonta ao final do século XIX. Em 1898, foi realizada a Primeira Conferência Internacional dos Estados Americanos, em Washington. Naquele momento, surgiu uma bifurcação, entre os defensores de um pan-americanismo “do Alasca à Terra do Fogo” e os que priorizavam uma integração latino-americana.
Histórico
A bifurcação gira em torno de diferenças culturais e sociais entre os países ibero-americanos e os EUA e o Canadá, além da óbvia assimetria de peso político e econômico entre EUA e demais países americanos. Mesmo entre os proponentes de uma integração latino-americana, havia outra clivagem, que excluía o lusófono Brasil, também assimétrico em relação aos seus vizinhos, especialmente por seu gigantismo territorial. O debate entre os dois modelos de integração pan-americana girou em torno especialmente de temas políticos até o período da Segunda Guerra Mundial.
A consagração dos EUA como superpotência após o conflito pareceu solucionar o dilema. Foi criada a Organização dos Estados Americanos, OEA, e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, consolidando a influência hemisférica dos EUA. Curiosamente, despertou efeitos contrários, já que setores tanto de direita quanto de esquerda resistiam à ideia de serem o “quintal dos EUA”, termo utilizado naquele período. Começaram a ganhar força propostas de retomar a integração latino-americana.
Tais integrações eram focadas agora em pautas econômicas, como a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio, a Alalc, de 1960, que nunca decolou na prática. Depois, vieram as tentativas de integração política, como o Grupo do Rio, e as integrações regionais, que tiveram mais sucesso, como a Comunidade Andina, o Mercosul e a Aliança do Pacífico. Claro que isso é um resumo extremamente objetivo desse processo centenário, que resultou na Celac em 2010.
Em bom português, a Celac nasceu para ser uma “OEA sem os EUA”. Ela reúne não apenas os países ibero-americanos, mas também 12 países anglófonos do Caribe, o francófono Haiti e o Suriname, colonizado por holandeses. O histórico da formação da Celac é interessante para a compreensão de seu papel e de sua amplitude, especialmente em meio às diversas “sopas de letrinhas” da integração americana, que muitas vezes contribuem para seu descrédito, com frequentes novas iniciativas.
Interesse europeu
A amplitude da Celac também contribui para a visão europeia da cúpula, de servir para a consolidação da UE como uma parceira de toda a região. Claro que isso já era válido para diversos países. Por exemplo, no Brasil, muitas vezes se comenta o fato de que a China é o maior parceiro comercial do país, com os EUA em segundo lugar, recentemente ultrapassado. Frequentemente se esquece, entretanto, que a UE, coletivamente, é a maior investidora no país, mesmo que não seja a maior parceira comercial.
Na cúpula, foi anunciado um total de 45 bilhões de euros em investimentos europeus, incluindo em áreas estratégicas como a mineração de lítio, além de comunicações, veículos elétricos e o chamado hidrogênio verde, dentre outros, além de investimentos em iniciativas industriais na região. Para a América Latina, significa a entrada de capital, de investimentos e de maior integração às cadeias globais de suprimentos. Para os europeus, significa espaço nessa suposta “nova Guerra Fria” e diversificação de suas parcerias econômicas após a invasão russa da Ucrânia e o afastamento entre Europa e China.
Dentre os 41 pontos da declaração final da cúpula, estão também comprometimentos com investimentos para transição energética de países latino-americanos e investimentos nos países insulares. Processos de negociação política na Colômbia e na Venezuela também são mencionados explicitamente. Também é mencionada a necessidade de pesquisa, debate e “justiça” sobre o impacto do comércio transatlântico de pessoas escravizadas.
O ponto mais curioso, entretanto, talvez seja o décimo-terceiro, que diz que a UE “toma nota” da posição da Celac sobre as “Islas Malvinas” e as “Falkland Islands”, colocando a nomenclatura utilizada pela Argentina em castelhano em pé de igualdade com a nomenclatura em inglês utilizada pelo Reino Unido. O Brasil reconhece o pleito argentino sobre as ilhas e utiliza o termo Malvinas, inclusive. O governo britânico protestou contra o uso do termo.
O secretário de relações exteriores britânico, James Cleverly, escreveu em uma rede social que “os habitantes votaram a favor de serem parte da família britânica. Argentina e UE deveriam ouvir sua escolha democrática". A grafia do texto foi uma vitória diplomática argentina e também consequência da retirada britânica da UE, já que o país poderia ter impedido essa pauta caso ainda fosse integrante do bloco, ameaçando, por exemplo, não assinar a declaração final.
Falando em assinaturas, a Nicarágua foi o único país que não assinou a declaração final, por não estar de acordo com os termos utilizados em relação à Rússia e sua invasão da Ucrânia. O conflito, na verdade, foi tema de apenas um dos itens da declaração final. Caso tudo o que foi acordado seja de fato implementado pelos próximos anos, a cúpula entre Celac e UE de 2023 poderá se tornar um ótimo exemplo de uma situação de ganhos mútuos na política internacional.
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