As medidas contra pandemia do novo coronavírus na Argentina tomaram as redes sociais nos últimos dias. A narrativa sobre os vizinhos seria a de que o país supostamente prova que fazer confinamento/lockdown durante a pandemia não funciona, pois a Argentina teria feito o maior confinamento/lockdown do mundo e, ainda assim, tem das piores taxas de infecção por milhão de habitante, algo comprovado com gráficos do Our World in Data ou do World Meters. Só que quem assume essa narrativa ou está omitindo algumas coisas, ou ignorando a existência delas, o que mostra a importância em acompanhar o noticiário internacional para compreender melhor o que se passa nos vizinhos e o que pode servir de lição para o Brasil.
Antes de tudo, pela objetividade, usemos apenas o termo confinamento, sem a necessidade de complementar com lockdown. A Argentina fez um lockdown extremamente rigoroso? Sim, começando já no dia 20 de março, quando o país tinha 128 casos e seis mortes no total. O número de casos na Argentina, tanto em números absolutos quanto na proporção da população, permaneceu extremamente baixo até o início de agosto e, proporcionalmente, só encostou no número de casos brasileiros na virada para setembro. Até meados de julho, a Argentina estava abaixo da média mundial em mortes por milhão de habitantes. Essa é a primeira discussão sobre a abordagem argentina, se os vizinhos não teriam “queimado a largada” e iniciado o confinamento muito cedo.
Aumento de casos
Todos esses dados podem ser conferidos pelo leitor no site Our World in Data, da universidade de Oxford, não são inventados ou de fontes obscuras. Se a Argentina até agosto tinha números baixos de casos do novo coronavírus e, no início de outubro, está entre os países com maior número de novos casos, algo mudou ou significa necessariamente que o confinamento “não funciona”? Nesse caso, algo mudou. O próprio confinamento. No dia 17 de julho, o governo federal argentino anunciou o relaxamento das medidas de confinamento. No dia quatro de agosto foi anunciado o retorno aos treinos dos vinte e quatro clubes da primeira divisão do futebol argentino. No dia 28 de agosto, novas flexibilizações do confinamento.
Novamente, datas e notícias facilmente verificáveis numa rápida busca online. Outra questão que é interessante de lembrar é que a Argentina é uma federação, com províncias e cidades com autonomia para adequarem políticas locais, não dependendo apenas do governo central. Claro que, no caso da metrópole Buenos Aires, maior centro populacional do país e de altíssima densidade populacional, é imperativa a cooperação entre os diferentes níveis de governo. Isso está sendo visto, mesmo considerando que o presidente Alberto Fernández e seu aliado Axel Kicillof, governador da província de Buenos Aires, são de partidos distintos ao prefeito da Cidade Autônoma de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. Na cidade vive 6% da população do país. Somada com a província, o total é 39%.
Esse lembrete é para contextualizar outros exemplos de abertura do confinamento. Em 10 de agosto, a província de San Juan retomou aulas presenciais e, no dia seguinte, a província de Formosa. Juntas, são menos de 3% da população argentina, mas trataremos disso mais adiante. Além das províncias, diversas cidades fizeram aberturas mais amplas e tiveram que retomar confinamentos mais rígidos em agosto, com a subida do número de casos. O fato é que o confinamento funcionou em manter o número de casos reduzidos, impedir superlotação dos sistemas de saúde e manter vidas seguras. Não é possível relacionar “o maior confinamento do mundo” e ainda “ter das piores taxas de infecção por milhão de habitante” pois os casos subiram apenas quando o confinamento foi relaxado.
E o que fez o confinamento ser diminuído? As pressões econômicas e o otimismo causado pelos bons resultados, inspirando uma abertura desastrada. “Oras Filipe, mas a pressão econômica mostra como o confinamento é inviável e não funciona, não dá para ficar sentado esperando a vacina”. Correto, em partes. Apenas o confinamento não funciona, de fato, mas ele faz parte do pacote de medidas que funciona. Essa é a perspectiva do artigo “Hammer and the dance”, do engenheiro Tomás Pueyo, que foi referendado em diversas abordagens. Inclusive, visto na prática, seja em países mais ricos, seja em países mais pobres, seja em países com governos de esquerda, seja com governo de direita. Pensando no número de mortos, dentre os ricos europeus, o caso de mais sucesso foi o da Alemanha. Dentre os europeus mais pobres, a Croácia. Na América do Sul, Paraguai e Uruguai. Na Ásia, o Vietnã e a Coreia do Sul. Na Oceania, a Nova Zelândia.
Exemplos internacionais
Todos esses países estão abaixo da média mundial de mortes por milhão de habitantes e, deles, apenas Uruguai e Coreia do Sul não impuseram confinamentos rígidos e amplos. Ainda assim, a população uruguaia seguiu as recomendações do governo de distanciamento social e a Coreia do Sul impôs confinamentos locais. Ambos os países também fecharam escolas, assim como todos os outros mencionados, já que crianças, embora sempre citadas como pessoas que não sentem os efeitos da doença, podem carregar e disseminar o vírus. Além disso, potenciais sequelas de longo prazo do vírus ainda estão sendo descobertas, como efeitos neurológicos. Esse risco de danos ocultos faz a prudência ser ainda mais justificada.
Repete-se que o confinamento faz parte do “pacote”, junto com outros procedimentos. Por exemplo, o número de testes da população. Proporcionalmente, até o início de agosto, de todos esses países, apenas o Vietnã testou menos seus habitantes do que a Argentina. No caso, pela abordagem vietnamita, de rastrear os contatos dos infectados. Pensando em testes por caso confirmado, o Vietnã esteve na primeira posição mundial durante o surto no país. Temos aqui o que talvez seja o principal problema da abordagem argentina, ter realizado uma abertura do confinamento sem testar de maneira suficiente, sem saber direito onde estava pisando. E, pensando no confinamento precoce, não ter conseguido aproveitar o tempo de antecedência para se preparar de maneira suficiente, seja por incompetência, seja por parcos recursos econômicos, seja pelo momento mundial, já que um dos motivos do confinamento argentino foi o fato de que, no início do ano, os insumos de saúde estavam escassos no mercado, disputados a peso de ouro pelos países.
De qualquer maneira, o confinamento precoce certamente causou cansaço na população e esgotou a paciência dos argentinos pelo período tão longo, causando protestos e pressão pela abertura. Para piorar, a abertura ocorreu nos meses frios do ano, o que favorece o espalhamento do vírus. Com a abertura, acontece o óbvio. Aumento rápido do número de casos. “Ah, mas o futebol local não voltou, e os jogos da Libertadores não possuem torcida”. Matérias na imprensa argentina vão mostrar aglomerações de torcedores em bares em dias de jogo pelo campeonato continental, além de dezenas de casos do novo coronavírus entre jogadores e funcionários dos clubes. No início de setembro, metade do elenco profissional do clube Boca Juniors estava infectado. São pessoas que circulam e vão transmitir a doença. “Ok, mas as províncias que a coluna citou tem população pequena”. Buenos Aires, com sua altíssima densidade populacional, também passou por abertura de atividades consideradas não-essenciais.
E, principalmente, a abertura nas províncias aumentou a interiorização da doença, como mostrado pela nossa editora Isabella Mayer de Moura. Hoje, metade dos novos casos argentinos estão no interior, onde há menos infraestrutura de saúde, logo, uma potencial maior letalidade do vírus. Em agosto, a ocupação hospitalar na província de Jujuy, fronteira com a Bolívia, passou dos 90%. Isso acontece pois a Argentina é um país mais pobre e que não pode se dar ao luxo do confinamento, podem dizer alguns. Ou que o confinamento destruiu a economia do país. Não, o que tem destruído a economia não são medidas sanitárias, onde for. É a própria pandemia. Segundo o Banco Mundial, em junho, a previsão é que a economia global encolha por volta de 7% no ano. Mesmo países que não realizaram medidas rígidas também vão sofrer na sua economia.
Salvar CPFs é salvar CNPJs
A Suécia, por exemplo, célebre por sua abordagem mais solta em relação ao novo coronavírus, sofreu um encolhimento de 8,6% do seu PIB no segundo trimestre. No mesmo período, a vizinha Dinamarca encolheu 7,4%, número parecido ao do Japão, enquanto o Paraguai encolheu 8,6%, a Alemanha, 10%, e o Reino Unido, 20%, um recorde. A pandemia muda os hábitos de consumo das pessoas, afeta preços, riscos de investimentos e de mercados, tudo isso. É um falso dilema salvar vidas ou salvar a economia, pois essa já está afetada pela pandemia. No caso da Argentina, contribui decisivamente para esse cenário o fato do país já estar em crise econômica desde antes da pandemia. Inclusive, dependendo do critério pode-se dizer que a Argentina está em crise desde 1999. A Argentina começou o ano com 35% da população na pobreza, 10% de desemprego, inflação na casa dos dois dígitos, taxa de juros em 80% ao ano e um empréstimo de 57 bilhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional contraído em 2018.
FMI, cujo relatório mais recente, de oito de outubro, World Economic Outlook, afirma que "apesar de envolver custos econômicos de curto prazo, medidas de lockdown podem abrir caminho para uma recuperação mais rápida ao conter a propagação do vírus e, com o tempo, reduzir a necessidade de distanciamento social voluntário, possivelmente com efeitos gerais positivos na economia".
O caso argentino não prova que “confinamento não funciona”, assim como o caso paraguaio não prova que “confinamento funciona”. O que o caso argentino prova é que confinamento funciona sim, para salvar vidas e dar tempo de preparo para o enfrentamento da pandemia, mas seu período precisa ser bem calculado, e ele não é para sempre. É necessário que ele seja acompanhado de uma estratégia mais ampla, de comunicação clara das autoridades, de incentivos econômicos, de ampla testagem e acompanhamento dos casos, para viabilizar uma abertura mais segura possível. Coisas que vão além de um pensamento rasteiro de abertura à qualquer custo, inclusive humano, ou de rejeição da realidade por preferências particulares. Para usar o termo da moda, falar que “a Argentina prova que confinamento não funciona” é fake news. Ou, no bom e velho português, é mentira.