A população suíça aprovou que o país adote leis mais rígidas sobre o controle de armamento civil, em parâmetros similares aos da União Europeia. O voto ocorreu no último domingo (18) e colocava em jogo as relações entre Suíça e seus vizinhos. A Suíça não é integrante da UE, mas, caso os helvéticos não aprovassem a mudança em suas leis, o país corria o risco de ficar de fora do espaço Schengen, a área em que fronteiras internas estão abolidas, favorecendo o trânsito de pessoas e mercadorias.
O referendo foi colocado por nacionalistas suíços como uma “defesa da soberania” do país, tentando emular o discurso de populistas europeus em outros países, a maioria integrante da UE. A estratégia não deu certo, já que esse discurso não é sensível na Suíça, justamente pelo país não fazer parte da UE. A votação e seu resultado permitem olhar para fatores interessantes sobre a Suíça, sua cultura e sua História, além de suas relações internacionais atuais.
Um sucesso da UE
Independente do sentimento que alguém possa ter sobre a UE, por algum motivo, é inegável que a área Schengen representa um enorme avanço europeu. O espaço compreende vinte e dois dos vinte e oito países da UE; Bulgária, Croácia, Chipre e Romênia passam por adaptação, enquanto Irlanda e Reino Unido optam por ficar de fora. O Brexit, inclusive, deve levar os irlandeses ao bloco, e a questão da fronteira interna da ilha da Irlanda é o tema mais espinhoso de todo o processo do Brexit.
Os quatro países em associação de livre comércio com a UE fazem parte do espaço Schengen; Islândia, Noruega, Suíça e Liechtenstein. A abolição de fronteiras internas, por um lado, é central na principal pauta dos eurocéticos, a discussão sobre imigrantes e refugiados. Se não existem fronteiras internas, então, a UE precisa estabelecer suas regras em conjunto, de maneira uniforme. Isso gera algumas críticas e, principalmente, desequilíbrios internos, já que uma solução de consenso é muito difícil.
Por outro lado, a área Schengen significa menos burocracia, menos entraves estatais, mais liberdade, mais atividade econômica e mais intercâmbio cultural e social. Todo dia, 1,7 milhão de pessoas cruzam uma fronteira europeia para trabalhar. Quase como se toda a população de Curitiba, a oitava mais populosa cidade brasileira, cruzasse uma fronteira todo dia. A pessoa reside na Bélgica e trabalha na Alemanha, ou mora na Eslováquia e estuda na Áustria, para ficarmos em exemplos hipotéticos.
O número de oportunidades de trabalho e estudo que seriam perdidas sem essa abertura de fronteiras é gigantesco, assim como seria o custo de uma burocracia aduaneira tradicional. O que leva a outro número que mostra o sucesso do espaço Schengen. O transporte de cargas intraeuropeu por terra totaliza cerca de 2,8 trilhões de euros por ano, com uma economia de até 42 bilhões de euros anuais somente pela unificação das barreiras alfandegárias e sanitárias.
Esses números importam pois contribuem na explicação do resultado do referendo. Não foi um voto apenas ideológico, entre eurocéticos ou contra a UE. Todo o desgaste do Brexit já mostrou que, economicamente e socialmente, os preços podem ser muito altos ao se tentar alterar algumas relações europeias, já consolidadas. O espaço Schengen já existe por mais de duas décadas e a Suíça assinou seu acordo em 2004. Empresas, trabalhadores, estudantes e turistas teriam a perder com uma eventual saída do espaço.
Democracia ao modelo suíço
Se o espaço Schengen é tão interessante assim, qual o motivo do governo ter corrido um risco ao consultar a população, alguém pode se perguntar. A Suíça tem um saudável hábito de realizar e valorizar referendos. Desde a constituição federal de 1848 foram realizados mais de 550, mais de três por ano. Claro, o ideal seria que esse tipo de procedimento fosse a regra em qualquer regime democrático, mas a realidade é que uma profusão de referendos é mais viável em um país com a dimensão e a população da Suíça.
Outra possibilidade é a realização de referendos de nível estadual, como costuma ocorrer nos EUA, em conjunto com as eleições regionais. De qualquer maneira, é mais uma demonstração de que quanto mais democrático e participativo um modelo de nação for, mais estável e próspero ele será. Governos autoritários causam instabilidade e ruptura, paradoxalmente sob a égide de preservar supostos valores ou evitar quebras institucionais. A constituição suíça também permite a participação popular ativa, não apenas reativa.
O parlamento suíço é bicameral, com duzentos deputados na Assembleia Federal e quarenta e seis delegados no Conselho dos Estados. Caso o parlamento aprove uma lei, uma petição popular pode ser articulada. Caso ela consiga cinquenta mil assinaturas em um prazo de cem dias, a aprovação da lei é suspensa e ela é decidida em referendo de maioria simples. Caso os governos de oito cantões, os vinte e seis “estados” da Suíça, decida desafiar o parlamento, o mesmo processo ocorre.
Além disso, se um projeto de lei elaborado por cidadãos conseguir cem mil assinaturas em um prazo de dezoito meses, ele também será submetido ao voto popular, podendo ganhar força de lei. Caso o parlamento decida fazer emendas ou suprimir partes do projeto, a população que escolherá qual versão será a adotada, também via referendo. O voto que decidiu por alterar as leis de armamento civil do país foi o terceiro referendo suíço em 2019, e o voto é facultativo.
O voto do último domingo foi articulado com a assinatura de cidadãos que eram contra a aprovação das novas leis pelo parlamento; ou seja, a mudança já havia sido aprovada, restava saber se a população votaria em massa contra a modificação. Cerca de 63% dos votantes, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas, votaram pela adoção das novas leis; 854 mil pessoas votaram contra, em um comparecimento de 43,7% do total do eleitorado. O resultado sacramentou a adoção da mudança legislativa.
Armas e a sociedade suíça
As novas leis europeias sobre armas são consequência dos ataques terroristas em Paris, no final de 2015. O debate foi concluído com a proposta, em 2017, de novos parâmetros legislativos para proibir a compra de armas semiautomáticas e fortalecer os bancos de dados nacionais para a identificação de armas de fogo. Como mencionado anteriormente, a Suíça é um dos países com dos maiores números de armas em mãos civis, com 27,6 armas por 100 habitantes.
Dois fatores culturais colaboram para esse número. A prática da caça esportiva e a formação de uma defesa baseada na ideia de milícias regulamentadas. Todo cidadão do sexo masculino serve nas forças armadas por um mínimo de 170 dias, além de mulheres que tenham se voluntariado. Dependendo de cada caso, o cidadão passa por “reciclagens” periódicas. Uma minoria opta por ficar nas forças armadas, junto de um núcleo profissional que se alista voluntariamente antes mesmo da idade da conscrição.
Ou seja, em teoria, cada cidadão suíço é um soldado da milícia de seu cantão, responsável pela defesa do país. As milícias são articuladas em torno das poucas unidades profissionais. Famosamente, após o serviço militar, cada cidadão fica responsável pela manutenção do seu equipamento pessoal, o que inclui o armamento apropriado. Desde pistolas até fuzis. Existia o temor de que as novas leis europeias pudessem afetar a capacidade de auto-defesa da Suíça, mas isso não ocorreu.
A nova regulamentação europeia inclui trechos específicos para armas de praticantes da caça e para “sistemas militares baseados na conscrição e na manutenção pessoal de armamento”; não menciona a Suíça explicitamente, mas fica claro ao que o trecho se refere. Essa escolha militar suíça tem profundas raízes históricas, que remetem ao século XVI, e foi aprofundada com o modelo de neutralidade reconhecido pelas potências europeias no Congresso de Viena, em 1815.
Pela opção da mais estrita neutralidade, a Suíça mantém uma política de autodefesa, diminuindo o componente profissional de suas forças armadas e com baixa mobilização em tempos de paz. Como mencionado no texto citado anteriormente, essa relação gerou alguns mitos históricos. Um deles teve certa repercussão no Brasil em tempos recentes, por conta dos debates sobre a posse de armamento por civis, que tornou-se ainda mais visível no último período eleitoral.
A Suíça e a Segunda Guerra Mundial
Algumas pessoas propõem que foi esse modelo de armas nas mãos dos cidadãos que salvou a Suíça de uma suposta invasão nazista durante a Segunda Guerra Mundial; sendo assim, a posse de armas por civis seria até uma questão de defesa nacional. A coluna não entra no mérito da última discussão, mas no da interpretação “curiosa” sobre a História. O que garantiu a independência suíça durante a Segunda Guerra não foi a sua doutrina de defesa, mas a enorme conveniência do papel Suíço frente às potências em guerra.
Essa conveniência é explicada pela neutralidade do país. Primeiro, ter um ator neutro no centro da Europa permitia conversas diplomáticas quando necessário, como na véspera da Batalha da Inglaterra e durante a rendição italiana. Segundo, permitia um contato indireto entre as autoridades do país em guerra, terreno fértil para espionagem e articulação com movimentos de resistência. O escritório central da então agência de inteligência militar dos EUA ficava justo em Berna.
Terceiro, permitia sediar atores neutros, como a Cruz Vermelha, dentre outros exemplos. Isso fazia da Suíça um território interessante para a internação de militares e civis fugindo de captura, a recepção de mais de trezentos mil refugiados e a troca extra-oficial de prisioneiros de guerra. Quarto, por causa da neutralidade e do historicamente conhecido sistema bancário suíço, o país era um ator econômico essencial aos esforços de guerra. O franco suíço era talvez a moeda mais sólida e convertível do período.
Os países em guerra vendiam reservas de ouro para os bancos suíços, obtendo francos suíços utilizados para a compra de materiais estratégicos de guerra e para o financiamento das indústrias bélicas. Segundo o historiador Adam Tooze, apenas o III Reich obteve cerca de 1,3 bilhão de francos suíços durante a guerra com a venda de ouro para bancos suíços, incluindo ouro de países ocupados e das populações judaicas. Isso seria aproximadamente nove bilhões de euros em valores contemporâneos.
A importância da Suíça na guerra ia muito além de um território no mapa, ocupado por exércitos coloridos. Ela era mais importante em sua posição de neutralidade do que ocupada. Mesmo após incidentes e escaramuças aéreas, já que o espaço aéreo suíço era repetidamente violado pelas potências, não era interessante uma escalada para um conflito aberto e deflagrado. Não dava nenhuma vantagem estratégica e possui poucas riquezas naturais para serem extraídas em um conflito.
Finalmente, a maior vantagem militar da Suíça em um conflito seria seu relevo montanhoso e de difícil penetração, que poderia atrasar um inimigo ocupante. A estratégia de réduit (reduto) era muito mais uma dissuasão; essa estratégia, entretanto, atrasaria uma ocupação, mas dificilmente a tornaria inviável. Restam os números para os adeptos da fantasia de que o sistema de milícias deteria uma invasão alemã durante a guerra. No início de 1940, a Suíça tinha mobilizado 430 mil soldados, para sua eventual defesa.
No mesmo período, a população do país inteiro era de quatro milhões de pessoas. Como comparação, entre Maio e Junho de 1940, em apenas seis semanas, a Alemanha derrotou e ocupou os Países Baixos, a Bélgica e a França. Fazendo frente à máquina de guerra alemã estavam 600 mil militares belgas, 240 mil militares neerlandeses, 500 mil militares britânicos e dois milhões e meio de combatentes franceses, com outros dois milhões de reservistas convocados para a guerra ocupando postos fora das linhas de combate.
Em outras palavras, em seis semanas a Alemanha derrotou exércitos quase nove vezes o tamanho das forças armadas suíças; no total, em última instância, estavam mobilizados mais soldados na frente Ocidental do que a população suíça inteira. Uma milícia armada, por melhor treinada que fosse, não seria o que deteria uma invasão no auge alemão em 1940. E, principalmente, essa invasão não ocorreu pois não era do interesse de ninguém. Assim como hoje foi de interesse dos suíços manter a boa relação com a Europa.
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