A semana que se encerra contou com um novo capítulo na novela das festinhas de Boris Johnson durante a pandemia. O chamado partygate começou como um terremoto na virada de 2021 para 2022 e se especulava que poderia derrubar o primeiro-ministro britânico no início do ano. O caso, entretanto, esfriou, Boris Johnson pagou uma multa administrativa e o episódio parecia ter ficado de lado, até a recente publicação de fotos das festas.
As fotos publicadas na mídia inglesa registraram a festa de despedida do então diretor de comunicação, Lee Cain. Feitas no dia 13 de novembro de 2020, elas mostram Boris Johnson conversando em meio ao convescote, com garrafas de vinho, comida e o premiê levantando sua taça em um aparente brinde. A data importa, pois a ocasião foi apenas alguns dias depois do decreto de um segundo confinamento no Reino Unido, como medida contra a pandemia de Covid-19 — a assim chamada Stay at Home Order, “Ordem de Ficar em Casa” numa tradução livre.
Em vez de o premiê e os integrantes de seu gabinete liderarem pelo exemplo durante a pandemia, estavam se aglomerando com convidados sem máscara e sorridentes. Lembrando que as festas foram na residência oficial de Downing Street e ao menos uma delas ainda teve o agravante de ter sido durante o período de luto oficial pela morte do então príncipe-consorte Philip, marido da rainha Elizabeth II, falecido no dia nove de abril de 2021.
Entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022, assessores renunciaram e Boris Johnson foi mudando suas versões. Primeiro, afirmou que "garantiram-me repetidamente, desde que essas alegações surgiram, que não houve festa e que nenhuma regra foi violada". Depois, admitiu uma festa, mas ele não estava presente. Posteriormente, admitiu que esteve no local, mas não participou de festejos. Para o parlamento disse que pedia sinceras desculpas e que apenas cumprimentou seus funcionários.
Sue Gray
Agora temos as imagens de Boris Johnson literalmente festejando enquanto a população estava confinada. Por causa das fotografias, Boris Johnson, na última quarta-feira, afirmou que "assume total responsabilidade por tudo o que aconteceu” e que “o relatório de Sue Gray enfatizou que cabe à liderança política assumir a responsabilidade final, e é claro que eu assumo". Afirmou que entende a “raiva das pessoas”, mas rejeitou a renúncia e que “seguirá em frente”.
O citado relatório Sue Gray é, politicamente, a peça central desse episódio todo. Falamos do partygate em janeiro aqui em nosso espaço. Citamos a pressão para renúncia, tanto pela oposição quanto também por alguns conservadores, mencionamos os índices de aprovação de Boris Johnson e como seu governo lidou com a pandemia. De lá para cá, entretanto, bastante disso mudou, por causa da guerra na Ucrânia.
Boris Johnson, de maneira astuta, projetou-se como uma referência no apoio aos ucranianos, com fornecimento de inteligência, de armamentos e com discursos pedindo por cada vez mais apoio para a Ucrânia. Ao mesmo tempo, agradou os setores mais próximos do partido Conservador ao não flexibilizar as regras para entrada de estrangeiros no país. Dos milhões de ucranianos que fugiram da guerra, apenas cerca de 60 mil entraram no Reino Unido.
Numa tacada só, Boris Johnson conseguiu deixar o partygate perder espaço nas manchetes, ocupando-o com suas atividades em relação ao conflito, e sem perder sua base em seu partido. Ainda assim, estamos falando de imagem, espaço midiático e índices de aprovação ou de rejeição. O relatório Sue Gray, independente disso, servirá na avaliação de uma questão objetiva: Boris Johnson mentiu deliberadamente perante o parlamento?
O relatório faz parte da preparação de uma comissão parlamentar, uma “CPI”, que vai avaliar a conduta do premiê e do gabinete. Johnson já tentou se antecipar, afirmando que terá uma “boa oportunidade” para contextualizar os eventos e mostrar que ele não mentiu perante o parlamento. A mentira, caso provada, poderia fazer sua demissão ser exigida perante o código de conduta de governo.
Bill Clinton e o perjúrio
É uma situação parecida com a do impeachment do então presidente dos EUA, Bill Clinton, em 1998. Ainda sobrevive a lenda de que Clinton teria sido impedido pela Câmara dos Representantes por ter um caso extraconjugal com a então estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky. Ou, ainda, pelo fato de o caso extraconjugal ter envolvido uma subordinada ao presidente, representando algum eventual abuso de poder.
Nada disso, Clinton sofreu impeachment por ter mentido sob juramento em uma investigação, o crime de perjúrio. No caso, a investigação de uma denúncia de assédio sexual feito por outra funcionária, Paula Jones. Ao depor nesse caso no dia 17 de janeiro de 1998, Clinton negou ter tido relações sexuais com Monica Lewinsky. Ao fazer isso ele cometeu um crime, o de perjúrio.
No dia 26 de janeiro de 1998, Clinton, em uma conferência de imprensa, repetiu, agora publicamente, que nunca teve relações sexuais com Lewinsky. Como consequência, o procurador do caso publicou um relatório acusando Clinton de onze crimes e irregularidades. Como se sabe, ele foi condenado na Câmara e inocentado pelo Senado no início de 1999. Também perdeu a licença para advogar por cinco anos, por ter cometido perjúrio.
É disso que vai tratar o partygate agora, na ótica do sistema legal britânico. Não apenas da imagem de Boris Johnson ou de debates éticos sobre festejos em meio a um momento de luto nacional decretado. Ele mentiu deliberadamente perante o parlamento, escondendo sua participação nas tais festas? Se sim, não sobrará muita escolha que não a renúncia e uma eleição interna do partido Conservador.