Foto: Jack Guez| Foto:

Reconhecer ou não Jerusalém como capital do Estado de Israel continua um tema espinhoso. A Austrália é a bola da vez, após o governo do premiê Scott Morrison anunciar que reconhece Jerusalém como capital israelense. Quer dizer, mais ou menos. O governo de Morrison criou uma gambiarra que só rendeu aborrecimentos até o momento. A Austrália reconheceu Jerusalém Ocidental como capital de Israel, disse estar aberta ao reconhecimento da porção Oriental como capital da Palestina, e condicionou a transferência de sua embaixada para Jerusalém a um acordo entre israelenses e palestinos.

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O governo israelense não gostou da decisão. Embora tenha dado “boas vindas” à disposição australiana de reconhecimento, classificou o ato tomado como um “erro”, pois Israel não admite a partição de Jerusalém; de fato, essa ideia de Jerusalém Ocidental e Oriental surge apenas em 1948, por conta das posições dos exércitos durante a Guerra de Independência. Para o governo israelense, Jerusalém é “una e indivisível”, e deve assim ser considerada capital do país.  

Já os palestinos também não gostaram da decisão, por considerarem que ela favorece Israel ao já fazer uma concessão. Além disso, ao condicionar a transferência de embaixada, joga a responsabilidade nos ombros dos envolvidos diretamente, inclusive os palestinos. O governo dos EUA também não ficou feliz, já que a decisão tomada foi “incompleta”, o que pode alienar as relações entre os dois aliados. Outro grupo descontente é o dos vizinhos muçulmanos da Austrália, como Malásia e Indonésia, o país de maior população muçulmana do mundo.

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Tentativas de negociar

O premiê Scott Morrison mereceria, então, um prêmio, por sua capacidade de unir países e perspectivas tão diferentes em uma voz unânime de descontentamento. Ele apenas reproduz internacionalmente sua política interna de evitar desagradar e manter relações com todos os atores possíveis. Morrison chegou ao poder substituindo Malcolm Turnbull, ambos do mesmo partido. Morrison, então tesoureiro (espécie de Ministro da Fazenda na Austrália), desafiou a liderança de Turnbull após o fracasso da política energética e uma série de escândalos políticos, incluindo direitos de nacionalidade.

Nos últimos dez anos, a Austrália teve seis ocupantes diferentes no cargo de Primeiro-ministro. A formação de coalizões viáveis de governar é complicada. Para manter esse equilíbrio precário, Morrison precisa concertar uma coalizão de três partidos para manter as maiores bancadas na Câmara e no Senado; maiores bancadas, entretanto, que não são a maioria. Dos 150 deputados, 73 estão com o governo; dos 76 senadores, apenas 31 estão ao seu lado. Curiosamente, o efeito concreto é o contrário, com seu governo mais desgastado e a oposição trabalhista favorita nas próximas eleições.

No exterior, Morrison “herdou” a questão de Jerusalém de seu antecessor, que resistia à pressão de Donald Trump para realizar movimento semelhante ao dos EUA. Nessa herança, colocou seu tempero de buscar conciliar. Antes de anunciar sua decisão, Morrison se encontrou com o presidente indonésio, Joko Widodo, no início de Novembro, às margens da cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático, que a Austrália compareceu como observadora. Na mesa, as declarações do Ministro do Comércio indonésio, de que não haveria acordos comerciais com a mudança de embaixada.

As relações entre Indonésia e Israel, embora não sejam muito exacerbadas, pela distância geográfica, são, na melhor das hipóteses, frias. Recentemente, quando Benjamin Netanyahu visitou a Austrália, seu avião teve que fazer um trajeto bem mais longo, para contornar o espaço aéreo indonésio, já que os dois países não possuem relações oficiais. Ao mesmo tempo, as relações entre Austrália e Indonésia são importantes em vários aspectos. O primeiro é o de segurança, com cooperação entre os dois países para evitar que extremistas indonésios realizem ataques na Austrália. Desde 2014 os dois países possuem um acordo, o Tratado de Lombok, em áreas de defesa e de segurança.

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Ambos os países compartilham diversos fóruns e outros acordos, já que a Indonésia é um dos poucos países que os australianos podem chamar de “vizinhos”. A exploração de petróleo e de gás nas águas que separam os países também é tema de cooperação e de conversas. Além disso, os dois países possuem uma relação comercial crescente. A Indonésia é destino de 2,5% das exportações australianas, em uma relação superavitária de cerca de 1,2 bilhão de dólares. Com a Malásia, as relações comerciais são ainda maiores, com um déficit australiano de 2,5 bilhões de dólares, especialmente por conta do petróleo.

Pesar no bolso

A decisão australiana, embora de meio termo, pode pesar no bolso do país. E isso deve ser observado de perto pelo Brasil e pelo governo eleito. Austrália e Brasil possuem um perfil agroexportador similar, e ambos os países têm em países muçulmanos alguns de seus maiores compradores. Caso a Austrália sofra retaliações comerciais pela sua decisão, isso deve servir de alerta para o governo eleito brasileiro, especialmente por dois motivos. Primeiro, a promessa de Jair Bolsonaro é de uma mudança mais radical do que a australiana. Ela inclui transferir a embaixada para Jerusalém, sem reconhecimento de Jerusalém Oriental e com um eventual rompimento de relações com a Palestina.

Ou seja, se mesmo a gambiarra australiana for retaliada comercialmente, certamente uma mudança radical também o seria. O segundo motivo é o peso econômico. A Austrália é o segundo maior exportador de carne halal, abatida pelos preceitos muçulmanos, no mundo. Para os países da Organização para Cooperação Islâmica, a Austrália exporta quase três bilhões de dólares ao ano. Cerca de 16% de todas as exportações australianas são de produtos agropecuários e alimentícios, em um mercado em que a Austrália possui uma série de vantagens comparativas, como a qualidade de seus produtos. Embora seus principais destinos sejam China, Japão e EUA, os mercados muçulmanos não devem ser desprezados na balança comercial australiana.

A Austrália é o segundo maior exportador de carne halal pois o topo do ranking pertence ao Brasil, como já mencionado aqui neste espaço. O Brasil exporta mais que o dobro de carne halal do que os australianos; também proporcionalmente, o tamanho das exportações de produtos agropecuários e alimentícios é mais que o dobro, chegando à um terço de todas as exportações brasileiras. Retaliações comerciais de países muçulmanos por uma mudança de embaixada em Israel podem causar prejuízos aos australianos, especialmente na perda de mercados futuros, já que o consumo desses países tende ao crescimento. Esses prejuízos, entretanto, comprometeriam a balança comercial australiana em uma escala muito menor do que o estrago que fariam no comércio brasileiro.  

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Esse talvez seja um caso muito transparente e fácil de ser assimilado que mostra a importância de se estudar política internacional e saber o que acontece pelo mundo. É essencial lembrar ao leitor que ele ganha seu salário em reais, mas come em dólar. Flutuações internacionais, eventos políticos e decisões aparentemente sem impacto na vida do leitor podem, sim, influenciar diretamente sua vida. No caso, um governo do outro lado do mundo tomou uma decisão que deve ser observada de perto pelo Brasil, seu governo e seus produtores, para algum aviso de onde estamos pisando.