O título desta coluna é um dos mais exóticos já publicados nesse espaço, mas o tema é digno de nota. No último domingo (7), os suíços votaram em um referendo federal sobre três tópicos. A proibição do uso de véus que cubram todo o rosto da pessoa, o estabelecimento de uma identidade digital para todos os cidadãos e o acordo de livre-comércio assinado entre a Associação Europeia de Livre Comércio e a Indonésia. Vários tópicos foram debatidos na véspera do referendo. Um dos principais pontos de debate é a relação do acordo com a indústria do óleo de palma indonésio, produto mais conhecido no Brasil como azeite de dendê.
Recapitulando algo que já foi visto por aqui, a Federação Suíça tem um saudável hábito de realizar e valorizar referendos. Desde a constituição federal de 1848 foram realizados mais de 550, mais de três por ano. Claro, o ideal seria que esse tipo de procedimento fosse a regra em qualquer regime democrático, mas a realidade é que uma profusão de referendos é mais viável em um país com a dimensão e a população da Suíça. É um exemplo de que quanto mais democrático e participativo um modelo de nação for, mais estável e próspero ele será. Governos autoritários causam instabilidade e ruptura, paradoxalmente sob a égide de preservar supostos valores ou evitar quebras institucionais.
A constituição suíça também permite a participação popular ativa, não apenas reativa. O parlamento suíço é bicameral, com duzentos deputados na Assembleia Federal e quarenta e seis delegados no Conselho dos Estados. Caso o parlamento aprove uma lei, uma petição popular pode ser articulada. Caso a petição consiga cinquenta mil assinaturas em um prazo de cem dias, a aprovação da lei é suspensa e ela é decidida em referendo de maioria simples. Caso os governos de oito cantões, os vinte e seis “estados” da Suíça, decida desafiar o parlamento, o mesmo processo ocorre. Além disso, se um projeto de lei elaborado por cidadãos conseguir cem mil assinaturas em um prazo de dezoito meses, ele também será submetido ao voto popular, podendo ganhar força de lei.
Burca e identidade digital
O voto do último domingo envolveu dois casos de medidas aprovadas pelo parlamento e desafiadas por petições, e um caso de iniciativa popular, a proposta para o banimento de véus que cubram todo o rosto da pessoa. Ela foi organizada pelo grupo de parlamentares mais à direita e possuía como pauta principal o banimento da burca, a mais radical das vestimentas femininas que algumas comunidades muçulmanas adotam. Seus defensores também alegaram questões de segurança pública. Os críticos da proposta argumentaram com defesa de direitos individuais, incluindo a liberdade religiosa, e de que a lei seria inócua, serviria apenas para despertar mais paixões no país.
O argumento de ser inócua se baseia no fato de que ela seria estatisticamente desprezível. De uma população suíça de cerca de oito milhões e meio de pessoas, cerca de quatrocentos mil são praticantes do Islã. Desses, menos de cem mulheres usam esse tipo de vestimenta, algo como 0,001% da população. Dos principais partidos do país, o tópico foi dividido, em linhas gerais, entre a direita à favor e a esquerda e o centro contra. Pouco mais da metade do eleitorado suíço participou do referendo como um todo, e essa medida foi aprovada por 51,2% dos votantes, agora encaminhada para o parlamento, que irá formalizar a proposta em forma de lei, dentro dos parâmetros constitucionais do país.
Já o voto sobre a criação de uma identidade digital para todos os cidadãos possui uma “pegadinha”. A proposta criaria a Comissão Federal de E-ID, um órgão para supervisionar a emissão das identidades digitais, que seria utilizado online para compras, contratação de serviços e uso em plataformas bancárias e governamentais. Algo similar, em uma comparação simplista, à autenticação digital utilizada em algumas organizações brasileiras ou para a emissão de receituários médicos digitais. A nova identidade digital diminuiria a burocracia e tornaria processos online mais seguros, segundo seus defensores. O que parece razoável, entretanto, foi rejeitado por 64% dos eleitores, margem significativa.
O motivo é que as identidades digitais poderiam ser emitidas por todas as instituições e empresas do chamado Swiss Sign Group, que inclui dois tipos de empresas. Primeiro, os correios, a empresa ferroviária federal e a empresa de telecomunicações Swisscom, todas as três estatais e controladas pelo governo.O segundo bloco é formado por bancos e seguradoras, empresas privadas, o que era alvo de críticas de partidos de esquerda e de parte da direita, enquanto a maior parte da direita e o centro apoiavam a medida. Segundo os defensores, a supervisão federal evitaria abusos e falhas de segurança, enquanto os críticos apontavam que os dados dos cidadãos suíços estariam vulneráveis e sujeitos aos ganhos privados dos bancos.
Azeite de dendê e livre comércio
Um debate sem dúvida pertinente no Brasil, onde ocorreu o vazamento de todos os dados pessoais de mais de duzentos milhões de pessoas, em um crime possibilitado por uma enfraquecida Lei Geral de Proteção de Dados, sancionada em 2018.
Finalmente, o azeite de dendê, protagonista do debate sobre a terceira proposta. No já citado ano de 2018, a Associação Europeia de Livre Comércio, formada por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein, concluiu um acordo de livre comércio com a Indonésia. Grupos ambientalistas coletaram as assinaturas necessárias para submeter o acordo ao voto popular, criticando especialmente a questão do óleo de palma.
No Brasil, costumamos associar imediatamente o azeite de dendê à culinária, especialmente baiana, com influências de alguns lugares da África, da onde eram trazidas pessoas escravizadas para a América. Uma dessas origens é a costa de Angola, que era domínio português, tal como o Brasil. É do idioma quimbundo angolano que vêm a palavra “dendê”, fruto do dendezeiro, uma palmeira da África ocidental. Da África que vieram as palmas trazidas ao Brasil e seu uso culinário. No mundo anglófono, entretanto, o azeite de dendê é chamado apenas de palm oil, óleo de palma, tradução muitas vezes utilizada em rótulos de produtos e de alimentos, mas são a mesma coisa.
Sabendo disso, é muito provável que toda pessoa que leia essa coluna perceba que, em sua despensa, possui inúmeros produtos com azeite de dendê, o óleo de palma, um ingrediente essencial na indústria alimentícia e de cosméticos. Ramos em que empresas suíças possuem grande atuação. Por isso, o acordo com a Indonésia teve o produto como foco principal no país alpino. Pelos termos do acordo, a maioria das tarifas alfandegárias para produtos exportados da Suíça para a Indonésia seriam reduzidas, ao mesmo tempo que tarifas sobre produtos industriais importados para a Suíça seriam eliminadas.
Os impostos sobre o óleo de palma seriam reduzidos entre 20 a 40%, com uma cota máxima de 12.500 toneladas; caso a cota seja ultrapassada, as tarifas integrais são impostas ao excedente. Em média, a Suíça importa trinta e duas mil toneladas de óleo de palma por ano. Segundo a agência Swissinfo, 29% é importado da Malásia, outros 27% das Ilhas Salomão e, da Indonésia, uma quantidade quase desprezível. O acordo seria para reverter esse quadro, já que a Indonésia desponta como um dos principais produtores de óleo de palma. Além disso, é uma das economias que mais cresce no mundo, com uma enorme e jovem população que poderia consumir produtos suíços.
Orangotangos e meio-ambiente
Segundo os defensores do acordo, o saldo positivo para empresas suíças seria de dezessete milhões de francos suíços anuais, apenas no óleo de palma. Ninguém questiona o dinamismo da economia indonésia e seu papel futuro no comércio global, o que é questionado é como esse crescimento ocorre. No caso do óleo de palma, sua produção em larga escala é prejudicial ao meio ambiente, sua cadeia de produção é marcada pelo uso abusivo de mão-de-obra e destruição de pequenos produtores, a requisição de terras para seu plantio desmata cada vez mais, o que também impacta na diversidade da fauna.
O símbolo da campanha contra o acordo na Suíça foi um orangotango, já que o animal, especialmente a espécie nativa de Sumatra, corre graves riscos de extinção. Também é apontada a contradição de defender cada vez mais medidas pró-meio-ambiente na Suíça enquanto endossa, indiretamente, abusos ambientais em outras regiões. Esses argumentos eram combatidos com o fato de que, pelo acordo, existem requisitos de sustentabilidade em torno da importação, com empresas precisando certificar que não desmataram na produção de óleo de palma. Tais mecanismos foram criticados como fracos.
Finalmente, existia o interesse em proteger a produção local de óleo de girassol, que sofreria com os preços baixos do óleo de palma indonésio. O texto foi aprovado por 51,65% dos eleitores, na segunda vez que um acordo de livre comércio precisou encarar o voto popular na Suíça. No tabuleiro internacional, isso dá vantagem aos primeiros países europeus a se aproximarem de uma economia dinâmica do sudeste asiático. O que seria uma mera conexão exótica, entretanto, fornece dois alertas. Primeiro, de como o mundo conectado comercialmente levará a mais, e profundas, contradições entre países ricos e países em desenvolvimento. Segundo, que as pautas ambientais ganharão cada vez mais força em negociações entre Estados. Algo que, sem dúvida, merece a atenção do Brasil.
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