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A crise entre Azerbaijão e Armênia continua. No último dia 12 de dezembro de 2022, “ativistas ambientais” azerbaijanos bloquearam a única estrada que liga a região de Artsakh à Armênia, o corredor de Lachin, na região monitorada pela missão de paz da Rússia, estabelecida após o cessar-fogo de novembro de 2020. No dia seguinte, o suprimento de gás à região também foi interrompido. As ações ameaçam a delicada paz na região, comprometem a vida de 130 mil pessoas e também demonstram as contradições de algumas recentes posições internacionais, especialmente da União Europeia.
As autoridades do Azerbaijão negam qualquer responsabilidade em ambas as ações, como se os “ativistas ambientais” na região fossem totalmente autônomos. Supostamente interessados em inspecionar a enorme mina de cobre de Kashen, eles acamparam na estrada e realizaram protestos provocadores em frente aos soldados russos da força de paz. No dia 13 de dezembro, tropas do Azerbaijão foram deslocadas para perto da região. O ato efetivamente cria um bloqueio à região de Artsakh, uma república autoproclamada em região de maioria armênia dentro de território juridicamente azerbaijano.
Toda a região, geograficamente, é chamada de Nagorno-Karabakh, ou Alto Carabaque, em português traduzido. Na república de Artsakh vivem cerca de 130 mil pessoas que estão com acesso aos serviços médicos, alimentos e aquecimento ameaçados, em meio ao rígido inverno da região. A disputa fronteiriça é uma herança dos tempos do Império Russo, sucedido pela URSS. No período soviético, a região, embora de maioria armênia, a população histórica da região, fazia parte, administrativamente, da república soviética do Azerbaijão.
Após o fim da URSS e os sucessivos conflitos, o impasse continua. Em suma, a população é armênia em um território que, juridicamente, pertence ao Azerbaijão. Já tratamos do histórico da região e desse conflito em diversas ocasiões aqui em nosso espaço, com algumas sugestões de leituras em outubro e em novembro de 2020, quando do cessar-fogo que atualmente vigora, após vitória militar do Azerbaijão. Vitória essa que forneceu uma posição estratégica para os azerbaijanos, ameaçando o citado corredor de Lachin e garantindo um possível cerco e bloqueio total de Artsakh.
Condenações ao Azerbaijão
As reações de parte da comunidade internacional já ocorreram. Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, postou em uma rede social que “o fechamento do corredor de Lachin tem graves implicações humanitárias e atrasa o processo de paz. Pedimos ao governo do Azerbaijão que restabeleça a livre circulação no corredor. O caminho a seguir é por meio de negociações.”. Peter Stano, porta-voz da política externa da UE, também postou em uma rede social que "A UE exorta as autoridades do Azerbaijão a garantir a liberdade e a segurança de circulação ao longo do corredor”.
Mesmo António Guterres, secretário-geral da ONU, se pronunciou. Segundo Stephane Dujarric, porta-voz, “O secretário-geral está acompanhando com preocupação os desenvolvimentos em andamento no corredor de Lachin e insta ambos os lados a reduzir as tensões e garantir a liberdade e a segurança de movimento ao longo do corredor, de acordo com os acordos alcançados anteriormente”. As declarações de Guterres ocorrem logo depois de um encontro com o ministro de Relações Exteriores da Armênia, Ararat Mirzoyan, que teria feito apelos à comunidade internacional.
A questão é que não adianta de nada a União Europeia “exortar as autoridades” do Azerbaijão a cumprir um acordo enquanto felizmente compram gás do país. Lembremos que, no último 19 de julho, o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, recebeu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para a assinatura de acordos em Baku. A ideia é dobrar as importações europeias de gás natural azeri para pelo menos 20 bilhões de metros cúbicos por ano até 2027. Segundo von der Leyen, o acordo “ajudará a compensar cortes no fornecimento de gás russo e contribuirá para a segurança energética da Europa”.
A presidente acha que o Azerbaijão fará o que com esses recursos provenientes da venda de gás? Vai continuar comprando armamento aos montes, especialmente da Turquia e de Israel, um país da OTAN e um aliado dos EUA. Achar que, após uma grande vitória militar, o Azerbaijão simplesmente pararia sua máquina é, no mínimo, ingênuo. As “negociações” são apenas para que o país possa lamber suas feridas e refazer seus arsenais, projetando suas próximas ofensivas militares que giram em torno do típico irredentismo territorial de Estados recém-fundados e governados por regimes autoritários e nacionalistas.
No último 25 de novembro, inclusive, o regime de Baku já anunciou que iria se retirar das conversas mediadas pela França, afirmando que os franceses não eram mediadores neutros. Puro teatro, já que o governo não pretendia ser parte séria nessas negociações desde o início. Quando da assinatura dos acordos de gás, em julho, comentamos aqui em nosso espaço que a diversificação de fornecimento de gás natural para a Europa em relação ao gás russo não tem relação com Direitos Humanos ou com conflitos armados, mas apenas com a segurança europeia.
Sono idealista
Comprar gás natural russo se tornou sinônimo de fornecer dinheiro para um país que vai usar essas divisas para manter sua máquina militar que está sendo utilizada em uma guerra dentro da Europa, que cria refugiados europeus e que pode, em última instância, se voltar contra a própria União Europeia. Se o Azerbaijão usar as divisas decorrentes de venda de gás para a Europa para invadir a Armênia, ou a Argélia usar em uma guerra contra o Marrocos ou para reprimir a população jovem que exige mudanças, ou os EAU comprarem bombas para usar no Iêmen não teremos a mesma repercussão.
Fala-se em democracia mas, mesmo em índices liberais, como o Democracy Index da revista Economist, o Azerbaijão é um país mais autoritário do que a Rússia. Uma ditadura governada por pai e filho desde a fundação do Estado, trinta anos atrás. Mais eficaz seria, por parte da UE, suspender esse tipo de acordo de compra de gás. O que não vai ocorrer, claro, na política internacional os interesses predominam sobre os discursos morais, como sempre lembramos por aqui. Não se trata de negar que existe uma crise complexa, nem de que parte das pautas do Azerbaijão são legítimas
Apenas é necessário atestar que um conflito armado e uma tragédia humanitária estão no horizonte enquanto a Europa simplesmente assiste passiva, pois não se trata de uma possível ameaça aos seus interesses, ao contrário da guerra na Ucrânia. A Armênia, então, precisa contar com seus basicamente dois aliados, Rússia e Irã. O que a torna alvo de críticas em parte do dito Ocidente. Oras, que outras opções sobram aos armênios? O premiê armênio, Nikol Pashinyan, se encontrou com Putin no último dia nove de dezembro, enquanto os ministros da Defesa dos dois países também se encontraram.
O bloqueio do corredor de Lachin, entretanto, estremeceu ligeiramente as relações entre Armênia e Rússia. Enquanto Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, afirmou que o país está “preocupados com o bloqueio do corredor Lachin, causado por desentendimentos entre as partes sobre o desenvolvimento de depósitos minerais”, a Rússia não criticou ou responsabilizou diretamente o Azerbaijão. Pashinyan, então, disse que “o silêncio de vários países amigos é no mínimo estranho”, enquanto agradecia EUA e UE por suas declarações.
O governo Pashinyan é “pró-Ocidente”, ao contrário da postura russófila da maioria dos governos armênios desde o fim da URSS. Mesmo alguns críticos da russofilia, mais pragmáticos, defendem que as relações com Moscou são questão de sobrevivência para a pequena república armênia, espremida entre dois vizinhos maiores, mais poderosos e rivais históricos, Turquia e Azerbaijão. O governo armênio também é tido como fraco, sendo alvo de um ultimato militar em março de 2021. Nem tudo é simples, e a Rússia também é um dos principais parceiros econômicos do Azerbaijão.
No cenário político interno da Armênia, a oposição diz que o governo Pashinyan está pronto para ceder Artsakh ao Azerbaijão, enquanto aliados do premiê acusam a Rússia de quererem envolver a Armênia em outra guerra, como se o conflito não estivesse apenas paralisado pelo cessar-fogo. O parlamentar Vigen Khachatryan chegou a culpar diretamente as forças russas pelo bloqueio. A Rússia não se mostra extremamente disposta a intervir militarmente na região, tanto pelo fato de estar comprometida em sua invasão da Ucrânia quanto pela distância do governo de Pashinyan.
A melhor possibilidade é, claro, a solução negociada, com o menor número de mortes possíveis. Isso, entretanto, não agrada a todos. Principalmente, o regime do Azerbaijão não se vê incentivado ao jogo diplomático, tendo a faca e o queijo na mão para uma ofensiva militar. Nessa obviedade, é necessário que dois atores despertem de seu sono idealista. A União Europeia, em suas declarações vagas consumida por contradições, e o governo Pashinyan, que parece não entender o contexto que cerca seu país, esperando uma solução cair do céu.