A tensão entre Rússia e Ucrânia esquentou um pouco mais nos últimos dias. Forças russas apreenderam três navios da marinha ucraniana, acusando-os de violar suas águas territoriais, no Mar Negro, próximo à península da Crimeia. Os navios são de pequeno tamanho, Berdyansk e Nikopol, de patrulha, cada um com tripulação de cinco militares, além de um rebocador, o Yanu Kapu. A Ucrânia, por sua vez, alega que as forças russas realizaram um ataque sem justificativas e em violação de lei internacional.
O estreito de Kerch, palco do incidente, que separa a Crimeia do continente, é de livre navegação. Além disso, um acordo bilateral entre os dois países garante liberdade de navegação na região, incluindo o Mar de Azov. O governo ucraniano exige a devolução dos navios, de seus tripulantes e também acusa que três marinheiros foram feridos. Esse cenário que pode parecer radicalmente novo, na verdade, já se desenhava desde 2014, e possui aspectos mais amplos e profundos.
O fim da URSS em 1992
A Frota do Mar Negro soviética era uma das mais importantes da estratégia da superpotência, e das mais poderosas do mundo. Com o colapso da URSS, um dos principais temas discutidos nas relações entre a Rússia e os novos países, com mediação de potências ocidentais, era a partilha dos armamentos. Especialmente os de grande valor econômico ou estratégico.
O período é pano de fundo para um grande volume de vendas clandestinas de armas de origem soviética pelo mundo. No caso da relação entre Rússia e Ucrânia, as negociações eram complicadas. O governo de Kiev representava a segunda mais rica república soviética, a segunda mais populosa e a terceira em tamanho. Ou seja, seria justo que o país herdasse uma fatia considerável do arsenal soviético.
Essa divisão dos arsenais se desdobrou em dois focos principais. Um, parte do arsenal nuclear. Temendo uma proliferação nuclear desenfreada, Ucrânia, Belarus e Cazaquistão receberam incentivos econômicos para abrirem mão de seus arsenais nucleares. Foi assinado o Memorando de Budapeste, em 1994. Pelo texto, esses países teriam suas integridades territoriais reconhecidas.
Hoje, nacionalistas ucranianos apontam que isso foi um erro, pois abriram mão de um arsenal nuclear em troca de promessas vazias. A verdade é que não havia clima político para três novas potências nucleares da noite pro dia, ainda mais em países ainda em processo de estabilização e em crise econômica. Para segredos nucleares soviéticos, via Ucrânia ou outras ex-repúblicas soviéticas, caírem em mãos consideradas erradas, como o Iraque de Saddam Hussein, seria um pulo.
O segundo foco foi a partilha da Frota do Mar Negro entre Rússia e Ucrânia. Assinados apenas em 1997, os acordos estabeleceram duas marinhas independentes; por cinco anos, a antiga Frota do Mar Negro foi uma arma binacional. Cerca de 80% dos navios ficaram com a Rússia, que obteve o direito de manter guarnições militares e o uso de antigas bases soviéticas em território agora ucraniano, como o porto de Sevastopol, na Crimeia, até 2017, no mínimo. A Rússia indenizou a Ucrânia em meio bilhão de dólares e teria que pagar aluguéis e a manutenção das bases usadas pela marinha russa.
Em 2010, o governo ucraniano, então pró-Rússia, estendeu o aluguel de bases na Crimeia até 2042, em troca de condições mais vantajosas em contratos de fornecimento de gás natural. Desde então, o governo ucraniano foi derrubado, um novo governo, pró-Europa e anti-Rússia, foi estabelecido. O nacionalismo ucraniano ganhou as ruas e os corações das pessoas, incluindo movimentos que flertam com o neonazismo e com o legado dos ucranianos que lutaram pelo III Reich, contra os soviéticos, na Segunda Guerra Mundial.
Crimeia e bases navais
A crise na Ucrânia motivou a operação de tomada das bases navais na Crimeia por forças russas, à margem do direito internacional. Posteriormente, ocorreu a anexação da península, cuja maior parte da população é russa e falante de russo; a herança problemática soviética das populações russas fora de suas fronteiras e a doutrina de proteção do governo russo já foram extensivamente abordadas aqui nesse espaço.
A Rússia agiu com força militar por não poder prescindir de suas bases navais na Crimeia, vendo suas ações como uma reação à interferência ocidental na Ucrânia, contra os interesses russos. A importância estratégica da Crimeia remete ainda ao século XVIII, com o maior exemplo na Guerra da Crimeia, da década de 1850, envolvendo russos, otomanos, britânicos, franceses e a Sardenha. Foi nessa guerra que ocorreu a célebre Carga da Brigada Ligeira.
A maior parte dos antigos oficiais navais ucranianos, inclusive, eram remanescentes da outrora poderosa Frota do Mar Negro soviética. Com o tempo e a falta de recursos, a quantidade e a qualidade dos navios caíram, mas não a identidade desses oficiais navais. Com o desenrolar da crise de 2014, diversos militares ucranianos desertaram seus postos e se juntaram à República da Crimeia, hoje parte da Rússia. A ironia foi tamanha que o primeiro comandante militar nomeado pelo novo governo ucraniano foi um dos primeiros que trocou de lado.
Além disso, diversos navios ucranianos foram capturados nos portos ou forçados à desertarem. O motivo que explica isso é que a capacidade de força no Mar Negro é dos principais interesses russos na região. Considerando que o Mar Negro é praticamente um “lago da OTAN”, com Romênia, Bulgária e Turquia, além da Geórgia em “diálogo intensivo” com a Organização e uma Ucrânia instável, a Rússia compreende que qualquer força naval significativa naquelas águas pode ser uma ameaça.
A Ucrânia, até hoje, ainda reivindica a devolução desses navios; alguns já foram retornados. Eles são propriedade ucraniana, passíveis também de serem ressarcidos. A postura russa em relação aos navios da Frota do Mar Negro acaba sendo espelho da postura russa sobre a península da Crimeia como um todo. De forma rápida e decisiva, a Rússia assegurou seus interesses e colocou-se em uma posição vantajosa para negociar depois. Seja negociar a autodeterminação da Crimeia, seja negociar a propriedade dos navios ex-soviéticos.
Reconstrução ucraniana
Dos totais sessenta e sete navios da Marinha Ucraniana em 2014, cinquenta e quatro teriam trocado suas bandeiras, voluntariamente ou não. Dos treze navios restantes, apenas dois são navios capitais, o que demonstra que a Ucrânia não tem uma capacidade considerável de força na região. Desde então, a Ucrânia retomou um projeto de construção de uma corveta e adicionou navios de patrulha ao seu arsenal.
O governo ucraniano também recebeu ofertas de navios dos EUA, estocados em reserva. Além disso, a Ucrânia também perdeu o acesso à bases navais na Crimeia. Teve que realocar boa parte de suas atividades para o porto de Odessa, na parte oeste do país. Para compensar isso, o país iniciou a construção de uma tímida base naval em Mariupol, no Mar de Azov, em sua porção oriental. E perto dos conflitos na Bacia do Don, contra separatistas pró-Rússia, apoiados por Moscou.
O incidente do final de semana é então um baque contra dois aspectos das ações ucranianas pós-2014. Primeiro, contra o processo, tímido, mas central no orgulho nacional, de reconstrução da marinha ucraniana. A própria identidade da instituição foi modificada, com datas cívicas sendo trocadas por datas pré-soviéticas. A marinha ucraniana, outrora herdeira da Frota do Mar Negro soviética, hoje não passa de um navio capital e alguns navios menores, sem grandes ambições.
A maior parte do seu equipamento foi confiscada e, pior, seus principais quadros de pessoal desertaram para a nação anteriormente irmã. Por isso que, mesmo no caso de uma flotilha de três navios pequenos, manter atividades navais ucranianas no Mar de Azov, cruzando o estreito que liga a Crimeia, vista como seu território legítimo, é algo importante. É um lembrete de que aquele pedaço de território deve ser dos ucranianos, em sua visão.
O segundo baque é enfraquecer as possibilidades de ações ucranianas contra os separatistas; no caso, impedir qualquer capacidade naval ucraniana dentro do Mar de Azov e que mantenha a base de Mariupol em atividade. Ou seja, impede a Ucrânia de agir dentro de seu próprio território legal. Uma afirmação de “quem manda no pedaço”, assim como a Ponte da Crimeia, que cruza o estreito de Kerch e é considerada também ilegal por Kiev.
Bloqueio e tensão
A passagem pela ponte foi bloqueada por um navio cargueiro russo, inclusive. Os russos, nas últimas semanas, sob protesto ucraniano, estão fiscalizando todo e qualquer navio que entre e saia do Mar de Azov, alegando questões de segurança. Mesmo que um dos destinos seja um porto ucraniano. A Ucrânia protesta, acusando um “bloqueio econômico”, e pediu ajuda aos aliados europeus no caso.
Os cidadãos ucranianos também protestaram em frente à diversas embaixadas russas pela Europa. Um dos símbolos desses protestos são barquinhos de papel, colocados nas grades e nos muros das embaixadas. É um choque de narrativas. Os russos alegam que os navios violaram suas águas territoriais e uma ação de provocação; os ucranianos alegam agressão russa e ações ilegais em águas internacionais.
O presidente ucraniano Pyotr Poroshenko declarou lei marcial, aprovada pelo Parlamento, válida por trinta dias; o projeto original falava em sessenta dias. A medida é válida para as regiões do país que fazem fronteira com Rússia, Belarus e com a Transnístria, região russófona e separatista da Moldávia. Defesa aérea, mobilização parcial de reservas militares e controle de comunicações são parte do pacote.
O governo ucraniano diz ter evidências fortes de uma futura ação militar terrestre de larga escala da Rússia contra seu território. Por um lado, o fato dos russos buscarem diminuir a presença ucraniana no Mar de Azov é congruente com isso, dando mais liberdade de ação para forças russas em apoio aos separatistas. Por outro, é necessário lembrar que as eleições ucranianas ocorrerão daqui a quatro meses.
A realização das eleições teve que ser confirmada por um voto no parlamento, já que a lei marcial poderia ameaçar o pleito. É também conveniente para o governo ucraniano ter, nesse momento, um foco maior nas relações, já amargas, com a Rússia, do que com a política interna. Ser visto como um líder forte contra o inimigo russo pode ser um trunfo enorme para Poroshenko nas urnas.
Enquanto isso, o Ocidente é chamado para o papel de mediador, sem sucesso. Uma sessão de emergência do Conselho de Segurança da ONU não conseguiu conclusão alguma. Trump disse “não ter gostado” do que ocorreu e pediu uma conversa olho no olho entre Putin e Poroshenko. Líderes europeus buscam dar razão às queixas ucranianas sem cutucar o urso russo.
O ponto de equilíbrio aqui é apoiar a Ucrânia sem fomentar uma guerra de larga escala. Sanções dificilmente terão mais algum efeito, a Rússia está sob diversas sanções econômicas e, sob certa medida, consegue contorná-las. A questão é que o Mar Negro é um ponto de tensão adormecido e uma crise dessas era questão de tempo, mas é uma crise secundária. No mar, o cerne é a Crimeia. Em terra, a bacia do Don. Três “barquinhos de papel”, porém, podem ser o estopim para algo maior.
A festa da direita brasileira com a vitória de Trump: o que esperar a partir do resultado nos EUA
Trump volta à Casa Branca
Com Musk na “eficiência governamental”: os nomes que devem compor o novo secretariado de Trump
“Media Matters”: a última tentativa de censura contra conservadores antes da vitória de Trump
Deixe sua opinião