No último mês, o governo Biden anunciou que vai doar oitenta milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 para países em desenvolvimento. Um gesto de boa vontade e humanitário, sim, mas que também transmite interesses dos EUA e dos países da Europa ocidental. Interesses tanto econômicos quanto políticos, numa corrida para manter influência internacional.
Primeiro, ao final de abril, Biden anunciou a doação de sessenta milhões de vacinas da Astrazeneca. A menção ao fabricante não é propaganda, é por ser um elemento curioso dessa equação. Essa vacina específica não foi aprovada para uso nos EUA, estão armazenadas. Depois, em 17 de maio, o governo anunciou a doação de mais vinte milhões de doses de vacinas autorizadas no país.
Finalmente, em três de junho, o governo Biden anunciou como essas doações serão fatiadas e distribuídas. Especificamente, seis milhões de doses virão para a América Latina, e o Brasil receberá uma parcela via o consórcio Covax. Ou seja, não receberá doses diretamente. O consórcio, sigla para, em português, Acesso Global às Vacinas da Covid-19, é um programa global da Organização Mundial da Saúde, para distribuição de vacinas para países em desenvolvimento, incluindo desafios logísticos.
Riscos
A França foi um dos primeiros países que realizou doações para o Covax, em meados de abril, e o governo Macron se comprometeu a doar 5% das doses que o país contratou até o fim do ano. Naquela ocasião, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, destacou a desigualdade nas campanhas de vacinação entre os países mais ricos e os países mais pobres, e os riscos que isso trazia.
Esse é o primeiro interesse, mitigar o risco. Não adianta uma extensa campanha de vacinação na Europa ocidental enquanto outras regiões ficam à míngua. Uma pandemia é, por definição, um evento global. O vírus circula por todo o mundo e, sem uma extensa campanha de vacinação, variantes mais contagiosas ou mais letais vão surgir. Exatamente o que já acontece, habitualmente começando por regiões com vacinação atrasada. E essas variantes podem chegar nos países mais ricos, diminuindo a eficácia da vacinação e aumentando riscos para essas populações supostamente protegidas.
Ainda em fevereiro, o mesmo Macron foi mais sincero, indo além desse raciocínio. Em uma entrevista, o presidente francês criticou a política de preços adotada por algumas farmacêuticas ocidentais e que estava começando uma “aceleração sem precedentes da desigualdade global e é também politicamente insustentável porque está preparando o caminho para uma guerra de influência sobre as vacinas”.
Essa guerra de influência foi explicada por Macron. Entre um ou outro questionamento das eficácias de vacinas russas e chinesas, ele lembrou das estratégias desses dois países. É importante destacar que Macron não é um cientista ou uma autoridade de saúde ou sanitária, então o seu comentário sobre vacinas alheias é, por essência, político. Outro campo da atuação, em que ele está mais gabaritado.
Disputas e dinheiro
As estratégias que Macron menciona são o uso da distribuição de vacinas como ferramenta de aproximação política ou econômica por Moscou e por Pequim. A China é, hoje, a maior doadora de vacinas para países em desenvolvimento, especialmente como abordagem de boa-vontade. As doações são acompanhadas de aproximação, fóruns de diálogo, cooperação política, pensando em negócios e oportunidades já existentes ou promissores.
A Rússia usa outra abordagem, a do autofinanciamento das vacinas. Via o Fundo Direto de Investimento, a Rússia financia a compra de sua própria vacina em condições mais amigáveis. Para países em crise econômica no meio de uma pandemia é uma oferta bastante tentadora. Você recebe a vacina hoje e paga amanhã, quando puder. Em moeda corrente ou produtos, ainda por cima, sem precisar usar dólares ou euros.
Como consequência, existe uma clivagem global no uso das vacinas. Além disso, há a imagem e o discurso de que as vacinas ocidentais são “caras”, “gananciosas”, e quem realmente ajuda países africanos, por exemplo, são Rússia e China, com vacinas acessíveis e que podem ser facilmente distribuídas, sem os desafios logísticos de super-congeladores, por exemplo, necessário para as novas vacinas.
Claro que Macron disfarçou sua abordagem, afirmando que “não se trata de diplomacia de vacinas. Não é um jogo de poder, é uma questão de saúde pública”, invocando o primeiro aspecto citado no texto. Seria inocência, entretanto, achar que apenas isso move os interesses dos Estados. Finalmente, existe outro aspecto, que supostamente seria positivo para todos os países. A recuperação econômica.
No século XXI, com economias integradas, cadeias globais de produção, setores de serviços com peso, países que precisam demais do turismo, não existirá recuperação da economia se apenas um grupo de países estiver imunizado. É necessário que o mundo inteiro esteja vacinado para que produtos, dinheiro e pessoas possam transitar livremente por aí. Tempo, e vacina, são dinheiro.
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