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Bolívia x Chile: o valor de um oceano

Bolivianos reagem com desânimo após a decisão da Corte Internacional de Justiça (Foto: )

A Bolívia sofreu mais uma derrota em sua busca por retomar uma saída oceânica para seu território. Na semana passada, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), baseada em Haia (Holanda) e que julga contenciosos entre Estados, decidiu que o Chile não tem obrigação de renegociar os limites entre os dois países. A interpretação boliviana era a de que o tratado possuía um prazo que determinava uma nova tratativa dos seus próprios termos. Para o Chile, foi visto como uma vitória, por razões óbvias. Para os brasileiros, nativos de um país com uma dos maiores litorais oceânicos do mundo, tal tema pode soar estranho, ou então mero choro de perdedor, já que a Bolívia perdeu seu território em um conflito armado. O problema, entretanto, é mais profundo e o impacto da falta de uma saída oceânica é enorme para uma economia.

Clube da privação

A Bolívia está entre os dez maiores países do mundo que não possuemlitoral; apenas ela e o Paraguai não possuem litoral em todo o continente americano. A maioria dos países nessa condição está no interior das duas outras grandes massas terrestres, a África e a Eurásia. O maior é o Cazaquistão, com mais de 2,5 milhões de quilômetros quadrados de área e nenhum centímetro de litoral.  

O mais populoso é a Etiópia, que historicamente possuía litoral, entretanto, isso mudou no século 19 e o início da conquista europeia, com a tomada da região que hoje é a Eritreia. Este clube de países sem litoral é heterogêneo, inclui também países diversos como Uganda, que tem uma das maiores densidades populacionais do mundo, a Mongólia, uma das menores, e cidades-estado como San Marino.

A ausência de litoral significa privação em diversos aspectos que, muitas vezes, se acumulam. Um país incrustado em um continente precisa lidar com maior quantidade de vizinhos, pode estar literalmente cercado de potenciais inimigos. Isto inibe políticas externas mais ativas. Muitas vezes, a ausência de litoral é consequência justamente do expansionismo de tais vizinhos.

O país sem litoral mais desenvolvido, a Suíça, tem como característica marcante sua neutralidade internacional. Não é um acaso. Adotar uma política neutra permite manter laços econômicos e políticos que façam com que seja desinteressante uma ação militar contra ela; o relevo montanhoso também ajuda, e é um caso muito similar ao austríaco. Ambos os países sediam diversas organizações internacionais para balancear essa neutralidade.

Outra privação, mais óbvia, é a de exploração de determinados recursos. A pesca, por exemplo. Mais de 2% do PIB norueguês provém da pesca, que soma quase US$ 9 bilhões em exportações. Na América do Sul o destaque é o Chile, uma das dez maiores indústrias pesqueiras do mundo. Odestaque negativo é a pouca exploração desse recurso no Brasil. A pesca como fonte de alimento pode até estar presente em países sem litoral, por causa de lagos e rios, como no Lago Vitória africano, mas não consegue tornar essa atividade um baluarte econômico.

O maior problema para países sem litoral, entretanto, está no comércio. Os custos de transporte são maiores, tornando os produtos daquele país menos competitivos no mercado internacional e encarecendo a importação de outros produtos. Os países sem litoral fazem menos comércio, recebem menos turistas e enfrentam mais empecilhos no desenvolvimento tecnológico; não é coincidência que, dentro de cada continente, os países com menor IDH de cada região são os países sem litoral.   Por exemplo, um produto comprado por um chileno de Santiago na China. O produto é desembarcado em Antofagasta, onde ocorre um eventual desembaraço aduaneiro, e levado por terra até a capital e, de lá, distribuído aos consumidores.

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O mesmo produto comprado por um residente de La Paz é desembarcado no Peru, em Ilo. Passa pela burocracia da aduana, é embarcado e levado até a fronteira; ali, passa por outro desembaraço e, possivelmente, deve ser trocado de veículo, até ser levado até a capital. Mais burocracia, mais pessoas envolvidas na logística, mais custos. Isto, felizmente, tem diminuído com o conceito jurídico de “país de trânsito”, porém, isso depende de arranjos dos países interessados.

Gasoduto como opção barata

É por isso que a maior parte do comércio de países sem litoral é realizada com os vizinhos, por terra. Ferrovias, gasodutos e oleodutos são algumas das ferramentas que fortalecem esse comércio, como entre os países da Ásia Central, a Rússia e a China. No caso boliviano, isso fica explícito com o gasoduto que liga a Bolívia ao Brasil, financiado pelo governo brasileiro.

O gasoduto permite que a Bolívia exporte uma quantidade maior de seus recursos à um preço competitivo, em contraste à opção de exportar gás natural por terminais portuários peruanos; ao mesmo tempo, garante um frequente suprimento de gás ao Brasil por um preço conveniente, já que o uso de um gasoduto é mais barato. Hoje, 27% do gás natural usado no Brasil é comprado da Bolívia.

O economista Paul Collier resumiu essa situação com a expressão “países com litoral servem ao mundo; países incrustados servem aos vizinhos”. O Cazaquistão depende das compras chinesas, já a Bolívia é dependente das compras brasileiras. Não se trata de dependência apenas por ser o maior parceiro, mas por ser, na verdade, a única possibilidade, ao menos a única competitiva.

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A demanda boliviana por uma saída oceânica permitiria ao país andino, por exemplo, que exportasse gás para outros parceiros, eventualmente lucrando mais com uma alta do preço. Um terminal portuário no Pacífico significaria maiores laços com a China. Por isso que, embora não pareça em uma primeira vista, essa demanda está ligada aos ruídos entre brasileiros e bolivianos nas últimas décadas.

Exemplo mais visível foi quando, em protesto aos preços, Evo Morales ordenou a ocupação militar e nacionalização de refinarias da Petrobrás brasileira. O presidente boliviano agiu assim como jogada de mídia para seu eleitorado e seus opositores, já que, nos bastidores, o governo boliviano simplesmente pagou a indenização dos contratos das refinarias. Curiosamente, o golpe de relações públicas teve mais efeito, e duradouro, no Brasil, onde ainda sobrevive o mito de que a Bolívia “tomou” as refinarias.   

Marinha boliviana e o gigante russo

Uma anedota frequentemente lembrada é o fato de que a Bolívia possui uma marinha, especialmente como símbolo nacional, lembrete constante da cruzada para retomar a saída oceânica do país um dia. A Bolívia tem acesso ao lago Titicaca, o maior da América do Sul, fonte de pesca e navegável. O Paraguai possui larga hidrografia, com rios navegáveis e geração de energia hidrelétrica, vide Itaipu.

Por isso que a distinção de litoral oceânico deve ser feita. Não basta um corpo d´água ou o acesso indireto ao mar; por exemplo, navios paraguaios podem cruzar as águas do Atlântico após saírem pelos rios divididos com Argentina e Uruguai. Canais, eclusas e hidrovias interiores são importantes, sem dúvida, mas não substituem um porto oceânico. E o exemplo mais visível disso é a Rússia.

A Federação Russa é o maior país do mundo em extensão territorial. Possui grande costa e explora enorme quantidade de recursos marítimos: pesca, petróleo, gás natural. A posição comercial do país, entretanto, é deficiente historicamente. Por dois séculos, o império russo buscou expandir seu território e sua influência política cada vez mais ao sul: nos Bálcãs, no Cáucaso, na Ásia Central e na Manchúria.

Mero expansionismo como naquele jogo de tabuleiro? Não, a intenção última era controlar ou os estreitos de Bósforo e de Dardanelos, ou a Pérsia ou a península coreana; nenhum objetivo desses foi atingido. Por isso, até hoje, a Rússia não possui um porto oceânico livre e em águas permanentemente quente no ano.

Os portos no Ártico e no Extremo Oriente congelam. Os portos do Mar Negro podem ser isolados caso uma potência inimiga controle os estreitos turcos ou a Crimeia. Finalmente, os portos do Báltico combinam ambas as características: o problema da temperatura com o fato de poderem ser isolados pelo cinturão de estreitos dinamarqueses.

Tantos os estreitos turcos quanto os dinamarqueses foram declarados vias internacionais, mas, ainda assim, implicam em custos maiores para o comércio russo, além de ser uma situação sujeita a crises, vide o caso da Crimeia em 2014. A Rússia sofre com essa maldição geográfica por séculos, minuciosamente analisada e estudada em diversas obras. E, por isso, suas opções mais competitivas são também os gasodutos e oleodutos.

Se a Bolívia conseguirá uma saída oceânica em breve, é impossível dizer. Chegou mais perto na década de 1970, em negociações entre os ditadores Pinochet e Banzer. O fato é que o acesso ao mar é mais que revanchismo ou choro de perdedor. É a chave para o desenvolvimento e o comércio. Os britânicos que o digam.  

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