Não é uma questão de opinião que Venezuela, Uruguai, Bolívia, dentre outros, são vizinhos do Brasil, é um fato geográfico. Ter uma boa relação com os vizinhos é algo proveitoso; no mínimo, necessário para momentos de contingências. Países diferentes de uma mesma região muitas vezes encontram desafios similares, ou problemas em comum. Não é à toa, tampouco conspiração, que fóruns regionais de Estados nacionais são formados e importantes.
Dito isso, na próxima semana o presidente Jair Bolsonaro inicia uma trinca de viagens que certamente terão grande impacto nesse seu início de governo. EUA, depois Chile, finalmente Israel. Obviamente, tais viagens, e as ideias e possibilidades derivadas delas, serão temas aqui nesse espaço. Em terras sul-americanas, Bolsonaro deve participar da proposta Prosur, do presidente chileno Sebastián Piñera.
A ideia é ser um fórum para “propor ações e acordos para a promoção do desenvolvimento na América do Sul”. Junto com isso, contornar a paralisação da UNASUL, que está praticamente inativa desde 2017. É a data de quando o ex-presidente colombiano Ernesto Samper concluiu seu período como secretário-geral e não foi nomeado um novo ocupante, por falta de consenso, um processo travado pela Venezuela.
Breve retrospectiva das sopas de letrinhas em sua vida
Não fique cansado ao ler tantas siglas. A UNASUL foi mais um órgão internacional latino-americano. Nesse caso, a proposta era ser um fórum político e de concertação regional da América do Sul. México e Panamá entraram como membros-observadores, o recorte do fórum é geográfico. Como mencionado, aquilo que é fato inescapável. Por uma série de razões, alguns mais plausíveis, outros menos, a UNASUL ficou com a pecha de “coisa da esquerda”, já que fundada em 2008, com os ex-presidentes Lula, o venezuelano Hugo Chávez, a argentina Cristina Kirchner, o equatoriano Rafael Correa, dentre outros.
Agora, qual o motivo de dizer que foi “mais um órgão internacional latino-americano”? O processo de integração e concertação regional americano começa com as Conferências Pan-Americanas, a primeira em 1889. Como o próprio nome diz, reuniam todos os países do continente americano, e a primeira delas foi em Washington. O processo como conhecemos hoje começa mesmo após a Guerra Fria.
Em 1948 é fundada a Organização dos Estados Americanos (OEA), fórum político sediado em Washington que une todos os países americanos. O período de sua fundação não é coincidência, ela serviu como mecanismo de concerto regional em torno da superpotência americana durante a Guerra Fria. Nesse sentido, por exemplo, foi no âmbito da OEA que as primeiras tentativas de isolamento da Cuba de Fidel.
Existiam dilemas nessa integração regional, entretanto, centradas especialmente na relação com os EUA. Não é “antiamericanismo” apontar o óbvio: que a relação dos países latino-americanos com os EUA é assimétrica. Estamos falando da maior potência militar do planeta, da maior economia do mundo, e do maior território e da maior população de todo o continente, do Alasca até a Terra do Fogo.
Além disso, existem as diferenças socioculturais, como o idioma, e as geográficas. Novamente, a geografia é um fato. De todos os países americanos, apenas dois possuem fronteiras terrestres com os EUA, Canadá e México; claro, existem também as fronteiras marítimas no Caribe. Existem temas sul-americanos que precisam ser tratados, temas caribenhos, temas mesoamericanos, etc.
Em 1960 é fundada a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC). Influenciada pela Comunidade Europeia e pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a proposta era a de criar um mercado comum e que as economias dos países-membro fossem complementadas pelas dos outros em seus processos de industrialização. A questão é que ela, desde o início, tinha pouco poder coordenativo.
Após ficar em segundo plano no auge da Guerra Fria, em 1980 a ALALC foi reformada na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI). Hoje, ela tem treze membros, incluindo as dez nações latinas da América do Sul, e serve de convenção-quadro para outros grupos, como o MERCOSUL, criado em 1991. E é bem possível que ao menos um dos leitores sequer tenha ouvido falar dela antes.
Entre 1960 e 1980, a região viu a criação de outros quatro grupos regionais. O Pacto Andino, em 1969, atual Comunidade Andina, com quatro integrantes e com os integrantes do MERCOSUL como associados; em 1975 é criado o Sistema Econômico Latino-americano e do Caribe, para cooperação econômica durante as negociações GATT, antecessor da atual Organização Mundial de Comércio. Seus vinte e oito países incluem basicamente toda a região latino-americana.
Desde 1980 tivemos a criação do Grupo de Contadora, em 1983, um fórum de concerto político para mediar as crises na América Central. Criado por México, Panamá, Colômbia e Venezuela, sua proposta era justamente a de agir politicamente sem influência dos EUA. Junto com o chamado Grupo de Apoio à Contadora, formado por Argentina, Brasil, Peru e Uruguai, foi formado o Grupo do Rio, em 1986. Basicamente, quase uma OEA sem os EUA e sem o Canadá.
O Grupo do Rio foi a origem da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), fundada em 2010 e que, essa sim, é uma OEA menos os dois gigantes norte-americanos, incluindo todos os países caribenhos. E é um fórum político, não econômico. Antes disso, entretanto, tivemos a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), em 2004, para “integração social, política e econômica” dos países-membros. Sua origem está em tratados bilaterais entre Cuba e Venezuela. Em 2008, a já citada UNASUL.
Calma que as letrinhas não acabaram. Na área econômica, tivemos o MERCOSUL, em 1991; a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), em 2000, responsável por grandes obras de infraestrutura que liguem as duas costas oceânicas da América do Sul, tema de interesse de basicamente todos os países; e a Aliança do Pacífico, em 2012.
Fundada por Chile, Colômbia, México e Peru, a Aliança contará em breve com Costa Rica e com o Panamá, além de Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Singapura como associados, e cinco dezenas de observadores. O namoro com o Canadá, inclusive, é bem próximo. O objetivos é a integração econômica com orientação ao continente asiático, onde estão potências comerciais como Japão e China. Livre comércio, eliminação de tarifas e trânsito de serviços são alguns dos pilares da Aliança.
Isso sem mencionar as organizações que extrapolam o recorte continental. Chile, México e Peru fazem parte da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC) e o Brasil integra o BRICS, por exemplo. Em 1973 é fundada a Comunidade e Mercado Comum do Caribe, atual Comunidade do Caribe (CARICOM), cujo recorte geográfico é evidente em seu nome, e inclui Venezuela e Colômbia como observadores.
Mais uma?
O propósito dessa longa e cansativa retrospectiva da integração regional não é apenas fazer um exercício como apaixonado por História. É mostrar que existem organizações e instituições demais na América do Sul e na América Latina, várias delas redundantes ou se sobrepondo às outras. Seria então proveitoso ou necessário endossar a criação de mais uma, como a Prosur?
Segundo Sebastián Piñera, o fórum seria um órgão sem ideologias, sem burocracia nem sede fixa. Sobre a segunda parte é interessante lembrar que o Grupo do Rio não tinha sede fixa, era um fórum regional, mas esse modelo encontrou certas limitações, originando a criação da CELAC. O Pacto Andino possui sede fixa, a Aliança do Pacífico não. Isso não é necessariamente uma regra, mas o modelo de Piñera já foi testado.
Inclusive, o presidente chileno, representante de uma direita democrática, um antônimo de Maduro, esteve na UNASUL durante seu primeiro mandato. Isso leva ao primeiro ponto, sobre um grupo sem ideologias fixas. Oras, exatamente! Os grupos regionais não podem ser recriados ou esvaziados à cada crise ou por divergências ideológicas, como ocorre hoje com a Venezuela. Eles não são organizações e grupos de governos ou de partidos, mas de Estados!
O Brasil é um vizinho da Bolívia seja com Getúlio, com Médici, com Jango, com Lula, com Bolsonaro, com Pedro I, com quem for. A mesma coisa do lado de lá da fronteira, e em todas as fronteiras ou por toda a região, para incluir Chile e Equador. Afinidades ideológicas podem servir em momentos de aproximação, mas não devem ser motivo para o afastar dos países.
Pior: seria permitir que a Venezuela esvaziasse, acabasse, com uma organização que já dura dez anos e teve ampla institucionalização, até em área de defesa, com o Conselho de Defesa da União de Nações Sul-Americanas. Além dos anúncios de suspensão de participação, na última quarta-feira, o presidente do Equador, Lenín Moreno, anunciou que vai retirar seu país da organização, e solicitou o prédio-sede.
O Brasil é que decide
Não seria o caso de reformar e melhorar o que já existe, invés de anunciar a criação de mais uma organização? Aproveitar as lições em um processo de amadurecimento e alternâncias de poder? E foi usado o termo endossar anteriormente pois essa decisão é, realisticamente, do Brasil. Se o governo brasileiro quiser reformar e resgatar a UNASUL, ele pode. Não existe um organismo de alcance sul-americano politicamente viável sem o Brasil. Assim como é do Brasil que pode vir a força do eventual Prosur.
Repete-se que é preciso entender que organizações internacionais são laços entre Estados soberanos, não são coisa de esquerda ou de direita; existem órgãos ideológicos, como a ALBA, mas são exceções e de pouco alcance. Novamente, como a ALBA. Corre-se o risco de uma boba conclusão de que a região terá um bloco de esquerda, a UNASUL, e um bloco de direita, o Prosur, quando deveria ser um bloco, formado por Estados.
Depõe contra os casos sul-americanos, além do citado dilema sobre as relações com os EUA, os medos sobre supostas tentativas de acabar com os Estados nacionais. No caso dos países hispano-americanos, essa “fobia” é originada ainda no início do século XIX, e, em 90% dos casos, é na verdade expressão do caudilhismo de senhores locais que temiam perder seu poder em suas paragens. Os caudilhos dos Pampas versus os caudilhos do Prata, ambos querendo distância dos caudilhos do altiplano andino, e por aí vai.
Chega-se no século XXI e temos até um presidenciável brasileiro falando em debate nacional sobre a “URSAL”, exemplo de teoria mirabolante que atrasa parcerias regionais. A União Africana existe desde 2002, com origens na década de 1960, com mais de cinquenta membros, e não colapsou por causa de um Maduro. A Liga Árabe vêm desde 1945, o Conselho Nórdico desde 1953, a Associação de Nações do Sudeste Asiático desde 1967, a Organização para a Cooperação Islâmica desde 1969, a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico desde 1989.
Em nenhum desses casos ocorreu a destruição do que for que seja idealizado, apenas ganhos mútuos e maior integração. Nesse caso, é importante lembrar, como brasileiros: a integração regional é vantajosa ao Brasil. É na nossa vizinhança que temos mais presença econômica, mais investimentos, liderança comercial. Não se pode viver de exportação de soja para a China, e é na América do Sul que a indústria e os serviços brasileiros melhor desempenham. Daí o valor, por exemplo, da aproximação entre MERCOSUL e a Aliança do Pacífico, que pode criar um poderoso bloco econômico onde o Brasil consegue uma presença de peso.
Organizações internacionais não são algo novo também. Para ficarmos em apenas um conhecido exemplo histórico pode-se citar a Liga Hanseática, fundada no século XIII, uma confederação de cidades-estado e guildas no norte da Europa Central. Pode-se escolher finalidades políticas, sociais, comerciais, uma soma dessas funções, uma miríade de possibilidades. A questão é que elas não deveriam depender dos ventos de um ou outro governo. A América do Sul é a única região do mundo que não consegue ficar dez anos sem criar um novo organismo que torna-se apenas uma mistura de letrinhas?
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