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Um ataque aéreo israelense contra a seção consular da embaixada do Irã em Damasco, capital da Síria, deixou ao menos oito pessoas mortas. Dentre os mortos estava o general Mohammad Reza Zahedi, da Força Quds da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, país atualmente aliado da Síria. Além de o governo iraniano prometer retaliar, o episódio permite olharmos um mito perpetuado e recentemente repetido com a visita de Jair Bolsonaro à embaixada da Hungria em Brasília.
Não é o primeiro ataque aéreo israelense ao coração da capital da Síria de Bashar al-Assad. Para nos atermos aos eventos posteriores ao ataque terrorista do Hamas em outubro de 2023, Israel realizou três ataques aos aeroportos de Damasco e de Aleppo, ainda naquele mês. Em 20 de janeiro de 2024, outro general iraniano, Sadegh Omidzadeh, foi morto junto de oficiais da inteligência iraniana, também em Damasco. Omidzadeh era um dos possíveis “sucessores” do general iraniano Qasem Soleimani.
Ataque aéreo israelense
Soleimani, morto em Bagdá em janeiro de 2020, foi o arquiteto do chamado “Eixo da Resistência”, a expansão da influência da Força Quds pelos países vizinhos ao Irã, “cercando” Israel e a Arábia Saudita. A Força Quds é o braço de operações clandestinas da Guarda Revolucionária Islâmica (GRI), mas funciona como uma organização independente. Se a GRI é um “Estado dentro do Estado” no Irã, a Força Quds é o “Estado dentro do Estado” da GRI, com pouquíssima publicidade de suas ações.
O Eixo de Resistência de Soleimani colocou sob influência iraniana as várias milícias e forças xiitas da região, no Iraque, na Síria e no Iêmen, além de aprofundar a aliança com o libanês Hezbollah e estabelecer uma aliança com o Hamas. Os houthis iemenitas e o Hamas, inclusive, historicamente falando, eram antagônicos à influência iraniana, por uma série de razões. Foi Soleimani também quem primeiro articulou a intervenção russa na guerra civil da Síria.
Israel conseguiu, então, em alguns meses, realizar ataques aéreos dentro de território sírio e causar importantes baixas ao Irã. O país consegue fazer isso com a primazia de tecnologia bélica que goza na região, operando os caças F-35, produzidos nos EUA e desenvolvidos por meio de um custoso consórcio de vários países aliados dos EUA. Israel é o único país da região que utiliza um equipamento sensível como esse, já que a Turquia foi excluída do consórcio e a encomenda dos Emirados Árabes Unidos foi vetada pelo governo Biden.
O referido caça é, no jargão popular, “invisível ao radar”, o que contribuiu para explicar o virtual domínio israelense dos céus de sua região, especialmente depois da invasão russa da Ucrânia e posterior diminuição do contingente militar russo na Síria. O governo iraniano prometeu retaliação e transmitiu uma “mensagem especial” aos EUA via a embaixada suíça em Teerã. Diversos outros países condenaram o episódio, como o próprio governo sírio, a Rússia e a Arábia Saudita.
Bolsonaro na embaixada da Hungria
Como tudo isso se relaciona com Bolsonaro e sua visita à embaixada da Hungria? Ninguém em sã consciência dirá que Israel atacou diretamente o solo iraniano, mesmo com os dois países travando uma guerra por procuração desde a década de 1980. Nem o próprio governo iraniano reivindicou que o ataque atingiu seu solo, afirmando que foi uma "grave violação" da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961, que rege as representações diplomáticas pelo mundo.
Se é assim, o quê explica que, quando foi revelado que Bolsonaro visitou a embaixada húngara, tantas pessoas, incluindo figuras de grande relevância na mídia brasileira, repetiram o mito de que uma “embaixada é território estrangeiro" ou é “território soberano” de outro país? Esse mito foi divulgado e perpetuado por Hollywood, em seu papel de dramatizar eventos ou tornar tudo mais épico, mas não é verdade e não deveria ser espalhado por gente que trabalha com isso.
Não há nenhum problema uma pessoa não saber disso, mas repetir uma desinformação quando se está em posição de jornalista, de comentarista ou de professor é um desastre. Aquilo de que gozam missões diplomáticas, como embaixadas e consulados, é a inviolabilidade. Ou seja, não podem ser violadas por autoridades de outro país sem a anuência do chefe da missão. Isso é regulado pela já citada Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961, que estabelece a inviolabilidade recíproca, nos artigos 22, 24, 27, 29 e 30.
Isso é feito para proteger os Estados, em primeiro lugar. Imagine o leitor que uma operação policial confisca computadores de uma representação dos EUA. Tais computadores podem conter informações sensíveis, que não devem ser acessadas por aquelas autoridades, ou mesmo por autoridades de um terceiro país. Um agente corrupto poderia vender uma cópia dessas informações para outro Estado, como a China. E esses são apenas exemplos hipotéticos.
No histórico recente tivemos casos em que pessoas buscaram refúgio em representações estrangeiras, como o senador boliviano Roger Pinto Molina na embaixada brasileira naquele país, ou o ativista e jornalista australiano Julian Assange na embaixada do Equador em Londres. Um mandado de prisão contra essas pessoas só pode ser executado com a anuência do chefe da missão, que possui o direito de não autorizar a entrada das forças policiais ou de não entregar tal indivíduo.
Inviolabilidade não é soberania
Ou seja, aquela pessoa está fora do alcance de uma operação policial convencional, mas não significa que esteja em território estrangeiro. Não há soberania envolvida. E, novamente, isso foi pensado na proteção dos próprios Estados, não de indivíduos. Frise-se que o tópico aqui é o mito de “embaixada é território estrangeiro", não no que Bolsonaro foi fazer ou deixar de fazer na embaixada húngara, suas relações com o governo Orbán, os processos contra ele e o fato de que seu passaporte está retido.
A mesma inviolabilidade que citamos também se estende aos agentes diplomáticos, suas residências particulares e suas bagagens diplomáticas, que podem conter correspondência de Estado. A inviolabilidade, inclusive, não é absoluta, podendo ser suspensa em casos de emergência imediata ou emergência pública. Por exemplo, um bombeiro militar fardado pode entrar em uma representação diplomática caso esteja ocorrendo um incêndio naquele momento, ou um policial pode acudir uma pessoa que peça socorro.
Outro mito é o de que, dentro de uma representação diplomática, vigora a lei do outro país. Não, dentro de uma embaixada estrangeira no Brasil vigora a lei brasileira, assim como dentro da embaixada brasileira em Ierevan vigora a lei armênia, e assim por diante. A famosa imunidade diplomática se aplica apenas aos diplomatas estrangeiros acreditados. Para dar um exemplo visual, o leitor pode, por exemplo, conferir fotos de diversos eventos na embaixada iraniana em Brasília.
Nessas fotos, verá mulheres com os cabelos descobertos, já que cobrir os cabelos não é algo previsto pela lei brasileira, embora, recentemente e infelizmente, duas mulheres tenham sido mortas pela polícia dos costumes iraniana por não cumprirem a lei de cobrirem seus cabelos e nuca. Algum leitor pode dizer que, devido à inviolabilidade, uma embaixada ou consulado seria um "território estrangeiro na prática". Não, nem na “prática” essa associação pode ser feita.
Vejamos alguns exemplos. Se uma representação diplomática fosse de fato território estrangeiro, na prática, seria necessário um visto para entrar no consulado ou na embaixada dos EUA, o que não existe. Um funcionário local poderia ter que submeter seu lanche a inspeções sanitárias, comuns com alimentos em fronteiras. Qualquer objeto poderia ser alvo de fiscalização aduaneira. Oras, o país acreditado poderia até instalar uma bateria de mísseis no “seu território" e o Brasil não poderia falar nada.
Os soviéticos não precisariam instalar mísseis em Cuba em 1962; poderiam usar seu vasto território de embaixada em Washington como base. Claro que esse é um exemplo intencionalmente exagerado, e não é sequer necessário entrar em minúcias, como o fato de que muitas representações são em imóveis alugados. Os fatos são que ninguém vai dizer que Israel atacou solo iraniano e que representações diplomáticas são “território estrangeiro” apenas na ficção hollywoodiana, mito que deveria ficar de fora do noticiário.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise