O Congresso brasileiro está debatendo o Projeto de Lei 4199/2020, que ficou conhecido como “BR do Mar”, evocando a ideia de uma rodovia marítima. A intenção do projeto seria expandir o transporte de carga no Brasil pela cabotagem, a navegação costeira entre dois portos de um mesmo país. Esse tema, assim como vários outros, é muitas vezes discutido usando-se exemplos internacionais, o que é bastante salutar e importante. O Brasil e os brasileiros aprenderem com as experiências, erros e acertos dos outros é um dos motes desse espaço. A cabotagem permite algumas dessas reflexões, tanto numa visão mais ampla quanto no caso específico da “BR do Mar”.
Comecemos pelos fatos. O Brasil transporta apenas 11% de sua movimentação de carga pela cabotagem, segundo matéria da colega Jéssica Sant'Ana aqui na Gazeta. De acordo com dados do BNDES de 2015, o modal rodoviário responde por 65% da carga que circula no país, o ferroviário por 15%, o hidroviário por 5%, o dutoviário por 4% e a fatia aeroviária é quase desprezível na totalidade nacional. Para o leitor que se perguntar qual a diferença entre cabotagem e o modal hidroviário, a cabotagem é a navegação marítima costeira, enquanto o modal hidroviário é a navegação por rios, rumo ao interior do país, muitas vezes contando com o auxílio de sistemas de eclusas.
A prevalência do modal rodoviário é derivada de uma aposta derivada de uma leitura errônea e ingênua no pós-Segunda Guerra Mundial. Naquele período, existia a imagem de que o carro e o caminhão eram o futuro, que seriam baratíssimos, tanto produção quanto manutenção. O petróleo jorraria para sempre e as longas rodovias dos EUA eram o sonho para o Brasil. Como o leitor bem sabe, a realidade se provou outra. O modal rodoviário é eficiente para determinadas finalidades, mas não pode ser a regra em um país continental, sendo mais devagar e mais custoso do que o modal ferroviário. Outro erro da leitura daquele período: desconsiderar a vastidão ferroviária em países com economias desenvolvidas, como o já citado EUA.
Carros e rodovias
De qualquer maneira, veio a indústria automobilística e abrir estradas se tornou ainda mais importante do que abrir ferrovias, ao ponto de Juscelino Kubitschek ficar com a imagem intimamente ligada ao Fusca. E esse foi o início de um ciclo vicioso. A indústria automobilística ganha peso econômico e consequente poder de barganha política, assim como os serviços rodoviários e as associações de seus profissionais. Subsídios aqui, subsídios ali, concessões acolá e uma conta enorme para pagar, direcionando recursos que poderiam ser usados para outros modais complementares. Notar o complementar, repete-se que o modal rodoviário é também necessário e com funções próprias.
O Brasil se tornou refém das rodas e das estradas e isso é dito com todo o respeito aos profissionais dedicados dessas áreas de trabalho. É uma constatação macro, estratégica, não pessoal. É necessário, então, que o país diminua essa dependência, tanto com ferrovias, com hidrovias e com a cabotagem. Um projeto de lei que torne essa atividade mais dinâmica e aumente a proporção do uso de um modal que reduziria custos, menos poluente, mais eficiente em um geral. Dentre as diversas questões técnicas propostas na “BR do Mar”, como regimes trabalhistas, existe um aspecto menos técnico, mas mais político, debatível, até ideológico, que é a abertura, ou não, para operações estrangeiras na cabotagem no país.
Existiria uma divergência entre as pastas de Economia e de Infraestrutura do governo brasileiro sobre isso. Hoje, apenas três empresas de cabotagem operam regularmente no Brasil, já envolvem capital estrangeiro e precisam possuir navios produzidos no Brasil, com bandeira brasileira, para operar. O ministério de Paulo Guedes defende uma total abertura, afirmando que a medida é protecionista e, ao menos parcialmente, responsável pela baixa eficiência da cabotagem no Brasil, expressa na tímida participação do modal no total transportado. A abertura para maior aluguel de embarcações estrangeiras por empresas que atuam no Brasil, e até mesmo o uso do Fundo da Marinha Mercante para financiar a construção de navios em estaleiros estrangeiros, deixaria o mercado brasileiro mais eficiente.
Exemplos internacionais
Só que isso não é necessariamente verdade. É uma argumentação válida? Sim. Infalível? Não. Ideológica? Também. Praticamente nenhum país do mundo possui sua navegação de cabotagem muito aberta para capital estrangeiro, por uma série de razões, algumas inclusive evocadas pelo ministério de Tarcísio Freitas, de formação militar. Fomento de indústria nacional em uma área essencial, segurança costeira, impedindo ampla presença de navegação estrangeira nas águas costeiras, e diminuição de vulnerabilidade perante o mercado internacional, já que a volatilidade das atividades comerciais poderiam atrair os navios utilizados aqui para outros lugares subitamente, seja por atrativos econômicos ou necessidade estratégica.
Essa é a origem do Jonas Act, de 1920, nos EUA, talvez uma das mais conhecidas leis marítimas do mundo e que recentemente foi tema de debate por causa do furacão que devastou Porto Rico em 2018. Segundo a lei, qualquer navegação entre dois portos dos EUA deve ser feita com navios produzidos nos EUA, com bandeira dos EUA e ao menos 75% da tripulação formada por cidadãos ou residentes permanentes. Essa lei é uma espécie de “sucessora espiritual” dos Navigation Acts britânicos, que foram adotados pelo país no século XIX, garantindo a atividade naval e mercantil, essencial para a economia.
O que deixou a lei de 1920 ainda mais rígida foi a Grande Guerra. Por causa do conflito, uma porção enorme dos navios mercantes que operavam em águas dos EUA foram confiscados pelos seus países de origem europeus, criando escassez do serviço na América do Norte. Ou seja, o componente de segurança nacional é um grande motivador dessas leis nos EUA, e elas não são unânimes. Existem críticos, que defendem maior liberalização lá também, com abertura para empresas estrangeiras. Na União Europeia, apenas navios com bandeiras de países-membro podem realizar cabotagem, o que está sendo um problema para o futuro pós-Brexit. O Japão possui uma das leis mais fechadas e protecionistas de todo o mundo. Mesmo o liberal Chile possui regras fechadas para cabotagem, em lei de 1979, da ditadura Pinochet.
Isso quer dizer, então, que necessariamente a cabotagem precisa ser fechada? Não, apenas que uma abertura ampla para participação estrangeira também não é receita de sucesso. O Japão transporta 40% das suas cargas via cabotagem e com um mercado fechado. O número alto também é explicado pela geografia, já que é um arquipélago. A UE transporta cerca de 30% de suas cargas via cabotagem, sem essa grande abertura defendida no projeto, que é uma opção, apenas isso, adotada tanto com motivos técnicos quanto por preferências ideológicas, seja vindo de Paulo Guedes ou quem for.
Problemas mais profundos
Como as matérias da colega Jéssica Sant'Ana apontam, a discussão é mais profunda e outros motivos para a defasagem da cabotagem brasileira são apresentados pelos atores envolvidos. Caso ainda não tenha ficado claro, a leitura das matérias é recomendada. Por exemplo, motivos para o tímido desenvolvimento da cabotagem seriam “excesso de burocracia nos portos para transporte de carga, os custos portuários, a obrigatoriedade de serviços de praticagem (pilotos específicos para cada porto) e o alto preço do bunker (combustível usado nos navios)” e afirma que esses pontos não são atacados no texto do projeto. Sem esquecer da força política, o bom e velho lobby, do modal rodoviário. Em uma análise da coluna, é mais provável que o que aconteça seja a operação, no Brasil, dos mesmos navios, mas com bandeira da Libéria ou do Panamá, países "paraísos fiscais" para o registro naval.
Outro elemento no caso específico brasileiro é o protagonismo da Marinha do Brasil nessa área, e parte razoável do oficialato da Marinha partilha das preocupações de Tarcísio Freitas, pelo que a breve experiência profissional na instituição ensinou ao colunista. Então, se não é necessariamente a abertura para operação de empresas estrangeiras que resolve o problema, se existem outros fatores problemáticos que o texto não aborda, o que mais explica a deficiência da cabotagem brasileira? A malograda aposta histórica, já citada. Os entraves burocráticos portuários, também já citados. E a realidade geográfica e econômica do país. O Brasil possui 8.500 quilômetros de costa marítima navegável, o que faz pensar, instintivamente, que a cabotagem poderia ter papel essencial. O que é verdade, mas, na realidade, existe pouca complementaridade econômica entre as regiões brasileiras.
Os estados brasileiros possuem mais relações comerciais com seus vizinhos imediatos, fazendo a cabotagem pouco atraente, já que não possui penetração no território. O terceiro estado mais rico da federação, Minas Gerais, não possui saída para o mar. Salvo algumas rotas de carga norte-sul, envolvendo Bahia e Pernambuco em uma ponta e São Paulo e Santa Catarina na outra, o fluxo comercial interestadual é regional. Por isso que mais de 70% da carga de cabotagem no Brasil é petróleo. Se os elos comerciais regionais são fruto da prioridade ao modal rodoviário e o incentivo da cabotagem poderia alterar essa realidade, é um cenário interessante, mas não é o que ocorre hoje.
A questão final é que a baixa integração da infraestrutura do território nacional é um problema histórico, derivado de escolhas erradas, negligência governamental, gigantismo territorial e até relacionado com a escravidão, que forçosamente prendia pessoas em um lugar, diminuindo o fluxo migratório e a ocupação e integração territorial. Esse problema teve períodos de melhora alternados com períodos de descaso. De qualquer maneira, ele é muito mais profundo do que achar que ele será resolvido rapidamente com medidas de abertura em um setor específico, vide os exemplos internacionais. Uma abertura até pode fazer parte de um pacote de soluções, mas está longe de ser a solução.
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