Presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi| Foto: Jewel SAMAD/AFP
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O presidente brasileiro Jair Bolsonaro passou quatro dias dias em visita oficial à Índia. Foi a quarta vez de um presidente brasileiro em visita bilateral ao país. FHC esteve lá em 1996, e Lula visitou em 2004 e em 2007. Desde então, Dilma também visitou a Índia, mas como parte de cúpulas do BRICS, não em visita bilateral. Além disso, foi a terceira vez que um presidente brasileiro foi o convidado de honra da principal festa cívica do país, o desfile militar do Dia da República.

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Em 26 de Janeiro de 1950 a Índia rompeu definitivamente seus laços com o Reino Unido; a independência em 1947 foi como um reino da coroa. As relações entre Brasil e Índia são, além de suma importância, interessantes. Fortaleceu-se da convergência de desafios das duas potências regionais pós-Guerra Fria, como a data da primeira visita presidencial brasileira exemplifica. Um marco foi a criação do fórum de diálogo IBAS, junto com a África do Sul, em 2003, e tornou-se um tema global com a formalização do BRICS, em 2009.

Além disso, a rica história indiana, especialmente nos últimos setenta anos, fornece argumentos e reflexões para a análise da própria História recente brasileira. Toda essa trajetória extrapola uma coluna como essa, mas o leitor que desejar pode, por exemplo, ler o livro Relações Brasil-Índia: além dos 70 anos; não é propaganda, trata-se de obra sem fins lucrativos, organizada pela professora Karin Costa Vazquez e disponível para download no site da Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty.

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Indústria bélica

Uma das pautas da visita de Bolsonaro foi a indústria bélica. O assunto recebeu devida e competente atenção por diversos jornalistas, alguns inclusive cobriram presencialmente a visita do presidente. Na maioria das vezes, entretanto, o tema foi analisado pela ótica do governo atual do Brasil, o que é importante e necessário. Numa coluna de política internacional como essa é interessante, como complemento, observar essas conversas e acordos na área de Defesa na ótica dos indianos e da História brasileira.

A principal assinatura nessa pauta foi entre a empresa brasileira Forjas Taurus, uma das das maiores fabricantes de armas leves do mundo, e o conglomerado indiano Jindal Group para a criação de uma joint venture que fabricará armamento e munição na Índia. O primeiro interesse nisso parece óbvio, mas muitas vezes escapa. As forças armadas indianas são as segunda maiores do mundo, com mais de um milhão de militares na ativa. Soma-se ao número os cerca de dois milhões de policiais, de diferentes autoridades.

Isso se deve em parte ao próprio gigantismo demográfico indiano e em parte ao estado de tensão geopolítica em que a Índia se encontra desde sua independência; incluindo uma muitas vezes ignorada disputa fronteiriça com a vizinha China. Ou seja, uma fábrica de armamento com tecnologia e participação brasileira se explica, de cara, pela imensa demanda interna indiana de armamentos e munição, mesmo que pensemos apenas nas forças armadas e forças de segurança, ignorando o mercado civil.

Outro aspecto relacionado é a busca indiana por um novo rifle de assalto padrão para todo esse gigantesco contingente. As forças armadas indianas tiveram duas tentativas fracassadas recentes, ambos de desenho e produção local. O fuzil Excalibur, que foi produzido em números reduzidos, mas considerado inadequado para ser o fuzil padrão do exército, e o projeto MCIWS, uma sigla futurista que rendeu apenas alguns protótipos ambiciosos, caros e pouco funcionais.

Enquanto isso, empresas brasileiras produzem rifles, sejam baseados em projetos importados, seja um projeto nacional, como IMBEL A2. Não trata-se de dizer que a empresa brasileira necessariamente vai desenvolver um novo rifle para as forças armadas indianas, mas que é mais um passo da Índia no caminho na busca por um novo projeto que seja viável, tanto na funcionalidade quanto na economia. Intercâmbio de ideias e de projetos, o chamado know-how, nunca é demais para uma potência em ascensão.

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Independência e desenvolvimento

Entra-se em outra esfera da indústria de defesa indiana. Ela é foco central do programa Make in India, lançada em 2014 e mais um passo na tradicional política desenvolvimentista indiana. Em brevíssimo resumo, o governo indiano busca atrair empresas e investimentos para sua economia, especialmente em setores tecnológicos e que inclua a popular “transferência de tecnologia”, termo muito em voga no Brasil anos atrás, quando de vultosos contratos bélicos do governo brasileiro.

A Índia deseja diminuir sua dependência estrangeira de compras de armas. A Índia é um dos cinco maiores importadores da indústria bélica, já que suas forças armadas, repete-se, são enormes, não apenas em número de pessoal, mas também de veículos e vetores de combate. Dois paralelos podem ser feitos com a História recente brasileira, mas, de certo modo, Índia e Brasil estão se distanciando. Como um país não-alinhado durante a Guerra Fria, e necessitando armamento de ponta, a Índia buscou variar seus fornecedores.

Fiar-se em apenas um país como fornecedor bélico, mesmo no caso de um aliado, é arriscado. Se essa linha de suprimento for rompida, seja por relações políticas, por economia ou até por questões militares, toda a operacionalidade do país estará comprometida. É uma postura que compromete até a autonomia do país. Para contornar isso, a Índia possui navios britânicos e russos, submarinos russos e alemães, navios desenhados e produzidos domesticamente.

Sua força aérea é ainda mais variada, com vetores franceses, russos, dos EUA, brasileiros, alemães e um caça nativo. A mesma variedade se repete no exército. Colocar o Brasil como um fornecedor nesse “cardápio”, além de fortalecer o projeto de desenvolvimento nacional, expande o leque indiano de opções. O Brasil, desde o pós-Segunda Guerra Mundial, defendeu abordagem similar, embora em proporções menores, já que não existe a mesma necessidade do governo brasileiro em investir em armamentos como há na Índia.

Ao mesmo tempo em que reduz  sua dependência de material bélico estrangeiro, a Índia desenvolve sua própria indústria de defesa. O que numa primeira vista pode parecer mero fetiche nacionalista também significa geração de postos de trabalho e de indústria de tecnologia. Também pode implicar em entrada de capitais, com exportações de armas. Assim como a não-alinhada Índia tenta variar seus fornecedores, hoje ela exporta armas para uma série de países, como Armênia, Jordânia e Vietnã.

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Distanciamento

O Brasil já foi assim, mas sua produção nativa de defesa entrou em declínio no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, se recuperando a partir da virada do século. Países como Brasil e Índia conseguem fornecer armamento de forma competitiva para mercados por vezes negligenciados pelas grandes potências, seja por custos, seja por razões políticas. Os antigos sucessos no chamado Terceiro Mundo dos veículos blindados Urutu e Cascavel, ambos da Engesa, e do turboélice Tucano, da Embraer, são exemplos.

Também é possível, progressivamente, beliscar mercados mais competitivos, como a venda de aviões de alerta aéreo da Embraer para a Grécia, um país OTAN, ou do próprio Tucano para o Reino Unido. A Índia cresce cada vez mais nesse mercado, somando a autonomia nacional com exportações; até 2025 ela será uma das maiores exportadoras de armas do mundo. O Brasil, entretanto, perdeu território, se recuperando nos anos 2000, embora hoje seja um grande exportador de armas leves e armamento menos letal.

É óbvio que, num mundo ideal, nada disso seria necessário, tampouco existiria. Em Jornada nas Estrelas não existe indústria bélica no século XXIV, e a tecnologia serve apenas para a exploração da galáxia e expansão do conhecimento. No primitivo século XXI, entretanto, a indústria bélica é uma ferramenta interessante de desenvolvimento econômico, que foi negligenciada pelo Brasil em diversos momentos, enquanto vai de vento em popa em terras indianas, apesar dos pesares.