No último dia 29 de Fevereiro, em Doha, no Qatar, o governo dos EUA e o Talibã assinaram um tratado de paz fruto de negociações que começaram em Julho de 2018. A presença dos EUA e de seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão já dura quase vinte anos, motivadas pelos atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001. O acordo, entretanto, não será duradouro, nasceu extremamente problemático e provavelmente terá o mesmo destino dos vários outros acordos estabelecidos no país desde o final da década de 1970.
Em suma, a oferta dos EUA foi de uma redução inicial do seu número de militares no país; de 13 mil para 8.600. Caso o Talibã cumpra sua parte do compromisso por 14 meses, todos os militares seriam retirados. Washington também se comprometeu a fechar cinco bases militares no prazo de 135 dias e uma declaração de “intenção” de encerrar as sanções econômicas contra o Talibã até o final de Agosto de 2020. Em troca, o Talibã se compromete em negociar com o governo afegão de Cabul.
Legitimidade do governo
As negociações deveriam começar no último dia 10 de Março, em Oslo, na Noruega e seriam inauguradas com gestos de boa vontade: o governo afegão libertaria cinco mil prisioneiros do Talibã, enquanto o grupo fundamentalista libertaria mil soldados e policiais afegãos que estão sob seu cativeiro. E aqui começa a miríade de problemas. O primeiro: o governo de Cabul não foi uma das partes do acordo assinado no Qatar. A reação do presidente Ashraf Ghani foi de dizer que não se comprometeu em nada.
Provavelmente pressionado pelos EUA nos bastidores, Ghani aceitou uma “troca progressiva” de prisioneiros. Libertaria mil e quinhentos talibãs, e outros mais seriam libertados à medida que as conversas progredirem. O Talibã, por óbvio, não aceitou, já que o acordo inicial era de cinco para um. E embora esse seja o primeiro problema, ele na verdade é sintoma, fruto de uma relação de desconfiança que nunca existiu. O fato é: o Talibã não reconhece, nunca reconheceu, o governo de Cabul.
Não foram poucas as vezes que Ghani e seu governo foram chamados de “fantoches dos EUA”, traidores, vendidos, termos similares. Desde a presidência de Hamid Karzai que conversas de paz fracassaram por essa falta de reconhecimento, mediadas por diversos atores: EUA, Rússia, China, Paquistão, etc. O Paquistão, inclusive, foi um dos apenas três países que reconheceram o antigo governo Talibã, que existiu de 1996 à 2001; os outros dois foram os sauditas e os Emirados Árabes Unidos.
O fato é que, por mais de uma década, nenhum governo dos EUA obrigou o Talibã a reconhecer o governo afegão, algo que deveria ter sido feito antes de qualquer negociação. E o termo “obrigou” é apropriado. Oras, trata-se da maior potência militar do mundo em uma mesa de negociação. É como querer que Israel e o Hezbollah negociem sem partir da premissa de que o grupo libanês precisa, antes, reconhecer a existência de Israel e o seu governo, que será um igual nessa negociação.
Para complicar ainda mais, as últimas eleições afegãs foram colocadas em xeque pelos dois principais candidatos envolvidos. Não é de surpreender, já que elas foram realizadas com baixíssimo comparecimento, com uma logística comprometida e uma população ou indiferente ou com medo, já que locais de votação eram alvos potenciais de ataques. Essa suspeição do resultado eleitoral causou uma bizarrice: duas cerimônias “de posse” simultâneas, pelos dois candidatos.
Mais surreal ainda: ambas as cerimônias foram no mesmo palácio, apenas em alas diferentes e com apoiadores políticos diferentes! Por enquanto, Ashraf Ghani é o reconhecido internacionalmente, mas nada exclui a possibilidade de que Abdulah Abdulah, antigo primeiro-ministro do país, progressivamente conquiste legitimidade em seu país e no exterior. Agora, além do Talibã não reconhecer o governo afegão, o grupo poderá alternar conversas entre um e outro, enfraquecendo ambos enquanto se fortalece.
Violência ininterrupta
Outro problema é que, desde o início das negociações, as hostilidades não pararam. Entre o governo afegão e o Talibã, entre o grupo fundamentalista e a Otan, e entre os três atores e o Daesh (autointitulado Estado Islâmico); o grupo, inclusive, realizou um atentado no dia da posse. Em Setembro de 2019 as conversas chegaram à ser congeladas por Washington, consequência de um ataque que vitimou um militar do país. Como é possível negociar uma paz duradoura enquanto os mesmos envolvidos trocam tiros?
O fato é que o Afeganistão vive em guerra quase ininterrupta desde a final da década de 1970. Primeiro, uma guerra civil entre seculares e religiosos. A União Soviética interveio no país à “convite” dos seculares, enquanto os religiosos receberam apoio de sauditas, do Paquistão e dos EUA; até o Rambo foi ao Afeganistão na época. Nove anos depois da invasão soviética, a superpotência se retirou, derrotada pelas guerrilhas afegãs. A guerra civil foi retomada e os religiosos venceram.
Depois, inicia-se uma nova guerra civil, entre os religiosos moderados de Ahmad Shah Massoud, o “Leão de Panjshir”, e os religiosos fundamentalistas. Massoud é assassinado e o Talibã emerge vitorioso, em um regime totalitário que executava pessoas em praça pública por banalidades. No ano de 2001 ocorre a intervenção da Otan, autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU. Após a derrota do regime Talibã, o grupo se retirou para seus redutos nas montanhas.
O foco tornou-se a caça por Osama bin Laden. Algumas regiões do Afeganistão, como Cabul, viveram breve período de estabilidade, na primeira década dos anos 2000. O Talibã recuperou parte de força, surgiu o Daesh e lideranças tribais tradicionais, que foram eclipsadas pelo Talibã nas décadas anteriores, voltaram ao protagonismo no país. A mesma estrutura social que transformou o Afeganistão no “cemitério de impérios”, impondo a mais humilhante derrota ao império britânico da rainha Vitória, 150 anos atrás.
O fato é que uma solução duradoura para o Afeganistão está bem longe de ser conquistada. Para conseguir um acordo, a inação de Obama é contrastada com a pressa de Trump; ambas infrutíferas. A complexa situação afegã não foi em nada diminuída nos oito anos de Obama e é subestimada pela gestão Trump, focada em cumprir a promessa de trazer os soldados de volta para casa. Isso é longe de ser um problema, não se trata de defender uma presença eterna dos EUA ali, mas constatar que o acordo nasceu falho.
O Talibã provavelmente vai “se comportar” pelos próximos meses, conseguir a diminuição da presença militar dos EUA, se fortalecer e então voltar ao poder; novamente, sequer consideram o governo existente como legítimo, e não vai ser agora que vão mudar de ideia. Pensando no tabuleiro maior, com o Afeganistão como peça central do Grande Jogo asiático, a ausência dos EUA ainda abre as portas para os vizinhos chineses. Economicamente, as terras afegãs são ricas em minérios.
Principalmente, ocupa posição central para as obras de infraestrutura da Nova Rota da Seda, uma ponte terrestre que conecta China, o planalto do Irã, as estepes da Ásia Central e o subcontinente indiano em um só lugar. E a justificativa já está pronta. A China pode agir no Afeganistão para “combater o extremismo” na vizinha província de Xinjiang, ou Turquestão Oriental, com sua expressiva população muçulmana uigur. Que a Otan precisa sair do Afeganistão é um fato; que essa não será a melhor maneira de fazê-lo, é outro.
Milei x Lula: G20 promete confronto de visões que testará pragmatismo entre Brasil e Argentina
Ministro de Lula endossa xingamento de Janja a Musk: “Estava preso nas nossas gargantas”
Efeito Milei: como as maiores empresas argentinas cresceram 130% no último ano
PEC da escala 4×3 encontrará resistência de vários lados no Congresso