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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Brexit e a esquerda republicana na Irlanda do Norte

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson (Foto: EFE/EPA/HARISH TYAGI)

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O próximo dia cinco de maio pode ser um dia histórico para a Irlanda do Norte. Os cidadãos da região do Reino Unido vão votar para eleger a assembleia local e a principal pauta do pleito é a discussão sobre o Protocolo da Irlanda do Norte, consequência das negociações para a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit. As pesquisas eleitorais apontam não apenas uma derrota para os defensores do Brexit, mas um possível resultado inédito.

Não é a primeira vez que esse assunto é abordado em nosso espaço e, nesse caso, não basta a discussão do Brexit ou de eventos recentes, é necessário também compreender o processo histórico de formação do Estado da República da Irlanda, ao sul, e da Irlanda do Norte, região do Reino Unido. A Irlanda do Norte como conhecemos hoje foi criada em 1921, quando a ilha Irlanda foi dividida pelo parlamento britânico.

A parte sul tornou-se independente em 1922, com maioria católica, e os seis condados do norte continuaram parte do Reino Unido, com certo grau de autonomia. A maior parte da população desses condados era de Unionistas, ou seja, defensores da união com a Coroa britânica. Os unionistas, em sua maioria, são descendentes de colonos protestantes que chegaram na Irlanda vindos da Inglaterra e de Gales.

É importante lembrar que existem essas três facetas do conflito. A nacional, entre irlandeses e ingleses, a religiosa, entre católicos e protestantes, e a ideológica, entre republicanos independentistas e monarquistas pró-Londres. No caso das duas últimas clivagens, o conflito pode ser interno às comunidades, que foi o que ocorreu por décadas, com violência comunal e uma virtual guerra civil entre a população norte-irlandesa.

Acordos e fronteira 

Como solução do conflito ocorreu a assinatura do Acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998. Assinado pelo Reino Unido, pela República da Irlanda e por grupos políticos de diferentes posições ideológicas da Irlanda do Norte, o acordo aboliu as fronteiras internas da ilha da Irlanda. Esse livre trânsito ficou ameaçado com o Brexit, que restauraria a fronteira, já que a Irlanda continua na União Europeia, ao contrário do Reino Unido.

Como tentativa de solução, em dezembro de 2020, foi concluído o Protocolo da Irlanda do Norte. Pelo texto, a fronteira foi “deslocada” para o mar. A Irlanda do Norte continua no território aduaneiro europeu, e mercadorias e pessoas podem transitar livremente pela ilha da Irlanda. Já produtos oriundos da UE que entrem em território do Reino Unido via a Irlanda precisariam passar pelos controles alfandegários nos portos no mar da Irlanda.

A solução desagradou os unionistas, tanto na Irlanda do Norte quanto no Partido Conservador britânico, que enxergam essa divisa interna como “culpa” da UE. Episódios de violência aumentaram na ilha desde então. Além disso, o governo britânico, mais de uma vez, ameaçou invocar o artigo 16 do Protocolo, que suspende as negociações por “dificuldades econômicas, sociais ou ambientais” ou “desvio de finalidade comercial”.

Os termos, vagos e subjetivos, podem ser aplicados a quase qualquer situação, e a situação política na Irlanda do Norte ficou cada vez mais tensa. Principalmente, as consequências locais do Brexit aumentaram o apoio aos grupos políticos que defendem a UE e o nacionalismo republicano irlandês, com eventual futura fusão com a República da Irlanda, ao sul, unificando a ilha.

Nessa perspectiva, existem três grupos principais na Irlanda do Norte. Os Republicanos, termo para os nacionalistas norte-irlandeses que desejam a unidade irlandesa em uma república independente do Reino Unido; os já explicados Unionistas, que defendem laços com o Reino Unido; finalmente, em menor número, os nacionalistas do Ulster, que desejam uma Irlanda do Norte independente, sem serem parte da república da Irlanda.

Sinn Féin 

As pesquisas eleitorais apontam o Sinn Féin na liderança da preferência, com cerca de 25% das intenções de voto. Fundado em 1905, o Sinn Féin teve papel importante na guerra de independência da Irlanda, e sua versão atual foi fundada em 1970, como um partido de esquerda e republicano. Ele é ativo em ambos os lados da fronteira, incluindo sete assentos na Câmara dos Comuns, em Londres, onde sempre se abstém.

Também conta com 36 das 160 cadeiras do parlamento da república da Irlanda, empatado com o partido de governo, Fianna Fáil, como maior bancada. Atualmente ocupa 26 das 90 cadeiras da assembleia da Irlanda do Norte, também empatado como maior bancada com o Partido Democrático Unionista (DUP, na sigla em inglês) seu maior rival e maior partido pró-Londres da Irlanda do Norte, próximo do Partido Conservador britânico.

O Sinn Féin é muitas vezes descrito como “o partido do IRA”, referência ao antigo grupo armado Exército Republicano Irlandês, IRA na sigla em inglês. Essa descrição pode ser feita tanto como crítica quanto como apoio, e se deve ao fato de que muitos integrantes do grupo armado entraram no partido após o processo de paz, embora não existam laços oficiais entre os dois grupos.

O DUP conta com 20% das intenções de voto nas pesquisas, seguido pelo centrista Aliança, liberal, com cerca de 14% das intenções. Em seguida estão o partido Unionista do Ulster com 13% e o Partido Social-Democrata e Trabalhista com cerca de 10%. Além de cinco partidos com ao menos 10% das intenções de voto, fecham a lista partidos menores, tanto unionistas quanto de esquerda, como o partido Verde.

Caso a vitória do Sinn Féin se confirme, será a primeira vez na História que um partido abertamente contra a união com Londres vence as eleições na Irlanda do Norte. Todas foram vencidas por unionistas. A questão é que, como muitas vezes no parlamentarismo, o primeiro colocado pode vencer, mas não levar. O Sinn Féin talvez não consiga formar uma coalizão de governo com maioria em um parlamento tão dividido.

O eventual fiel da balança de uma coalizão viável será o partido liberal Aliança, que se declara de centro, nem unionista e nem republicano. Podem tanto conquistar concessões do Sinn Féin quanto viabilizar uma coalizão com os partidos unionistas. Não seria a primeira vez que a maior bancada de um parlamento ficaria de fora do governo, liderando a oposição.

A possibilidade de uma vitória do Sinn Féin também acende alertas em Londres. Boris Johnson pode ser alvo de um inquérito parlamentar por conta das festas durante a pandemia, e uma vitória republicana na Irlanda do Norte, mais a promessa de Nicola Sturgeon, líder do governo da Escócia, de um novo referendo pela independência escocesa, podem jogar gasolina na fogueira da crise política.

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