A “guerra fria” entre China e os EUA ganha alguns contornos dignos da “Guerra Fria original”, entre a potência americana e a União Soviética. Um desses contornos é a guerra de informação, desinformação e propaganda em massa. Não apenas a desinformação por canais de inteligência, mas também a briga sobre como os lados devem ser percebidos. A disputa pelos corações e mentes, como batiza o documentário Peter Davis sobre a guerra do Vietnã, inspirado pela frase de um general francês.
As memórias de boa parte dos leitores ajuda na compreensão desse conceito. Exemplo mais banal é o dos filmes hollywoodianos da Guerra Fria em que o soviético, ou o comunista, era o vilão. Rambo 3 e Rocky 4 são casos famosos, mas passam longe de serem os únicos; e, nos cinemas de Moscou, ocorria o contrário. Vilões de quadrinhos, como a encarnação original da Viúva Negra ou o Dínamo Vermelho. As infinitas obras de espionagem, dentre outros exemplos.
Imprensa ou agentes estrangeiros?
O financiamento de obras para um paladar mais amplo pelos respectivos governos também ficou comum. A linha entre informação e propaganda ficou tênue, assim como a linha entre a criatividade e a demonização do outro. E a indústria cultural e o jornalismo estão caminhando para o mesmo caminho, agora entre EUA e China.
Dois exemplos dos últimos dias podem ter repercussões de longo prazo. Na terça-feira, dia 18, o governo dos EUA anunciou que mudará seu tratamento dos cinco veículos de imprensa estatais chineses. Agora, a agência Xinhua, a China Global Television Network, a China Radio International, o jornal China Daily e a empresa Hai Tian Development USA, que distribui o jornal People’s Daily, serão tratados como “agentes estrangeiros”. Isso quer dizer que eles terão que registrar seus funcionários e suas propriedades nos EUA no Departamento de Estado. Contratações, demissões, aluguéis, expansões, tudo isso terá que ser comunicado ao governo de Washington, que poderá vetar compras imobiliárias.
Em teoria, a decisão do governo não afetará a liberdade de imprensa desses veículos, apenas obrigará uma maior transparência de suas atividades perante os EUA. Na prática, entretanto, é o governo de Washington classificando esses conteúdos como propaganda política e podendo cercear as atividades de repórteres com essa justificativa. No dia seguinte, a China realizou o que poderia ser visto como uma retaliação ou, ao menos, um “aviso” de que a decisão de Washington não foi bem recebida.
Três jornalistas do Wall Street Journal tiveram suas credenciais de imprensa revogadas e declarados persona non grata, com cinco dias para deixarem o país. O vice-chefe da sucursal local, Josh Chin, a repórter Chao Deng e o repórter Philip Wen; esse último é australiano, enquanto os outros dois possuem nacionalidade dos EUA. Segundo o governo chinês, a decisão foi tomada como reação ao artigo “China Is the Real Sick Man of Asia”, do dia 3 de Fevereiro.
A tradução literal do título seria como “China é o verdadeiro homem doente da Ásia”, o que foi recebido pelo governo como uma declaração racista. Um comunicado do governo de Pequim disse que "a população chinesa não aprecia a mídia que usa linguagem racialmente discriminatória, difama e ataca maliciosamente a China". O texto faz uma ligação entre o covid-19, conhecido como coronavírus, e o desempenho dos mercados de ações chineses, afirmando que a economia chinesa estaria doente.
Historicamente, a expressão “homem doente da Ásia” era usada para se referir à China da segunda metade do século XIX, quando o país sofria nas mãos de outras potências. As guerras do Ópio, intervenções militares, concessões de privilégios e perdas de territórios, como a Manchúria exterior e Hong Kong, são os eventos que esse “título” evoca. Uma memória delicada, de um período atribulado, que é frequentemente apontado por Pequim como algo que jamais se repetirá.
Ou seja, é um termo que atinge inclusive o orgulho da identidade nacional chinesa como potência. Nos livros escolares, é o “século da humilhação”. Como curiosidade, no mesmo período, o império Otomano era “o homem doente da Europa”, retalhado progressivamente pelas potências europeias. Se essa decisão chinesa foi um caso pontual, causado pelos aspectos espinhosos da matéria, como seu título e o vírus, ou o início de represálias contra os EUA, precisamos esperar para saber.
Cinema e nacionalismo
O que já é visível é a valorização da História e da mitologia chinesa no cinema doméstico, o maior mercado do mundo. Ao ponto de grandes produções dos EUA fazerem concessões às autoridades chinesas para garantir a exibição de seus filmes, ou então acenar agrados ao público. Das dez maiores bilheterias chinesas de todos os tempos, apenas um filme não é local, Vingadores: Ultimato. Dos outros nove, seis são baseados em mitologia chinesa, obras de ficção chinesas ou eventos reais numa perspectiva chinesa.
O leitor dificilmente assistiu o filme de maior bilheteria da História que não é em inglês. Lobo Guerreiro 2, cuja bilheteria de quase 900 milhões de dólares foi quase toda exclusivamente na China. A trama repete o personagem Leng Feng, o “Jason Bourne chinês” numa analogia simplista. No filme, ele vai para a África, onde luta com piratas somalis e guerrilheiros sub-saarianos genéricos para proteger médicos que tratam pessoas africanas; médicos ocidentais e também, claro, chineses.
Os principais vilões do filme são os mercenários da Dyon Corps. O leitor tem uma chance para adivinhar o país de origem dessa corporação e de seu líder, “Big Daddy”. Sim, dos EUA. Em terceiro lugar na bilheteria histórica está Sequestro no Mar Vermelho, filme em que a protagonista é a marinha chinesa e suas forças especiais, em tom bastante nacionalista, retratando o resgate de centenas de pessoas do Iêmen durante a crise de 2015; novamente, piratas somalis são alguns dos vilões.
Outros filmes dessa lista são O Capitão, filme sobre um comandante de um vôo que salva os passageiros em um pouso forçado; Terra à Deriva, em que taikonautas chineses salvam a Terra de um apocalipse solar; Ne Zha, um desenho baseado em mitologia chinesa; e, finalmente, Wo he wo de zu guo, sem tradução em português, que saiu em inglês como “Meu Povo, Meu País”, é ótimo exemplo do cinema como linguagem de propaganda nacionalista.
O filme consiste de sete contos, cada um com diretor diferente, contando uma “antologia da República Popular da China”. Um se passa na vitória na guerra civil em 1949, outro quando do primeiro taikonauta chinês no espaço, e assim por diante. Novamente, nada que o cinema hollywoodiano não tenha feito e não faça. A questão é que, dez, vinte anos atrás esse cenário atual não existia, do uso de grandes indústrias cinematográficas e veículos de imprensa numa guerra fria entre China e EUA. Até onde vai a briga por corações e mentes?
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