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O gigantesco porta-contêineres Ever Given encalhou perto do terminal sul do canal de Suez, bloqueando o trânsito marítimo ali. A maioria dos leitores já deve saber disso, vendo ao menos as manchetes ou as imagens, do navio atravessado na via navegável. Além de brincadeiras ou do mero espanto, esse é um evento que merece atenção, perguntas e muita, muita preocupação, pois representa um infarto no comércio global.
A figura de linguagem é óbvia, uma artéria importante do fluxo comercial está entupida por um navio de quase 400 metros de comprimento e mais de duzentas mil toneladas. Cerca de 12% de todo o comércio mundial passa por ali. Contabilizando apenas o fluxo de contêineres, como é o caso do navio encalhado, a porcentagem sobe para 20%. Dada sua localização, petróleo e gás natural também costumam ser transportados pelo canal.
Economia egípcia
Para o Egito, o impacto é pior ainda. A economia do país já está combalida, em crise desde 2013, com um pico de inflação em 2017. Apenas em 2020, o país contraiu mais de oito bilhões de dólares em empréstimos do Fundo Monetário Internacional. A dívida egípcia total é muito maior, alimentada por megaprojetos de infraestrutura iniciados nos últimos anos, como a nova capital e o desenvolvimento da área do canal.
Como agravante, o governo egípcio não lida bem com a pandemia, para dizer o mínimo, com denúncias de números maquiados e de prisão de jornalistas e de profissionais de saúde que buscassem difundir informações. Para lidar com a pandemia, são necessários recursos, de preferência em moeda forte, aceita internacionalmente. E nisso entra a importância do canal de Suez para a economia egípcia.
As tarifas pagas pelos cerca de 19 mil navios que passam anualmente pelo canal são a principal fonte de divisa estrangeira para o país, totalizando cerca de cinco bilhões e meio de dólares em 2020, um ano já afetado pela pandemia. A via navegável, sozinha, representa cerca de 2% de todo o Produto Interno Bruto egípcio, sem considerar o restante da zona econômica do canal. Muito longe de ser pouca coisa.
Também está longe de ser pouca coisa o prejuízo causado pelo encalhe. Segundo a imprensa especializada em frete marítimo, cada dia de canal bloqueado representa nove bilhões de dólares em custos extras. Além disso, o encalhe fez subir o preço do petróleo, o que gera um efeito cascata em toda a economia. Finalmente, o efeito dominó causado pelos atrasos e prejuízos deve prejudicar as cadeias de produção por meses ainda.
Lições do passado
Pode-se até optar por desmerecer tais previsões e estimativas como meros exercícios de futurologia. Então, olhe-se para o passado, nas duas ocasiões em que o canal foi bloqueado na História recente. Primeiro, de outubro de 1956 a abril de 1957, durante a crise militar causada pela relação anglo-francesa, com apoio israelense, à nacionalização do canal pelo governo egípcio de Gamal Abdel Nasser.
Mesmo durando apenas alguns meses, o bloqueio fez com que o petróleo do Oriente Médio e os produtos do Oriente tivessem que contornar a África para chegar na Europa. O Reino Unido precisou impor um racionamento de combustíveis, fábricas fecharam e o preço de produtos de consumo, como o chá e o açúcar, subiram. A libra perdeu valor, cenário agravado por ameaças de sanções pelos EUA.
É muito difícil quantificar em valores o impacto econômico do fechamento, mas ele foi apenas uma “amostra” do que estaria por vir. Durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, o canal foi novamente bloqueado, situação que durou até o início de 1975, quase oito anos completos. Apenas os custos extras de transporte foram de cerca de cinquenta bilhões de dólares em valores atuais.
Mais que isso, o comércio marítimo global caiu 20%, e só recuperou o volume pré-1967 em 1979, segundo o banco de dados do Fundo Monetário Internacional. Outra consequência dos bloqueios foi a expansão do tamanho dos navios, para melhor aproveitar as viagens e diluir os custos de transporte. Ao ponto em que foram construídos os navios cujo tamanho ultrapassa os dos canais de Suez e do Panamá.
Para esses supernavios, os custos de contornar a África ou a América acabam se pagando, graças ao volume transportado. Por exemplo, antes de 1956, cerca de 60% dos produtos que aportavam nas ilhas britânicas passaram por Suez. Na década de 1980, esse número já era menor que 20%. Ainda assim, o canal de Suez continua importantíssimo para o comércio mundial, como visto pelas cifras citadas anteriormente.
Prisioneiros da geografia
E esse é o ponto mais importante que o acidente nos recorda. Embora existam hipóteses de sabotagem, de “barbeiragem” ou de comportamento irresponsável, ao menos por enquanto o que sabemos que aconteceu é que um navio foi pego numa tempestade de areia, com ventos intensos e pouca visibilidade, e encalhou. Um acidente “simples”. Como consequência, a economia global pode ser afetada.
Por mais que o comércio tenha mudado e evoluído, com avanços tecnológicos e novas maneiras de transportar cargas, algumas questões são quase incontornáveis. Uma delas é o cenário geográfico. Por exemplo, um país que não possui reservas de petróleo precisa lidar com isso e buscar maneiras de obter esse recurso. Não é possível “criar” petróleo no solo ou nas águas de um país.
Isso é parte da argumentação da obra A Vingança Da Geografia, de Robert Kaplan, professor de geopolítica e analista de temas internacionais. É claro que a obra pode ser bastante debatida e possui pontos que podem ser tidos como “polêmicos”, mas, mesmo em suas provocações, ela contém fundamentos. Um dos pontos é que somos, em certa parte, prisioneiros da geografia.
O canal de Suez é a única ponte entre as águas do Mediterrâneo e as águas do Índico. Uma ponte criada pelo homem, mas em um cenário naturalmente favorável, com pouca distância entre dois mares e lagos no caminho. A geopolítica e o internacionalismo realista são, muitas vezes, questionados ou tidos como obsoletos, pensamentos arcaicos. Às vezes pode até ser, mas é só um navio encalhar em Suez que a geografia se vinga.