Morreu no domingo (14) o ex-presidente da Argentina Carlos Saúl Menem. Aos 90 anos de idade, ele já enfrentava diversos problemas de saúde e estava internado em uma clínica desde o ano passado. Como praticamente qualquer político, ainda mais um que governou um país do tamanho argentino por dez anos, Menem é uma figura divisiva e polêmica. Possui admiradores e detratores, ambos igualmente apaixonados, e isso longe de qualquer estereótipo sobre dramas e emotividade argentina. Ainda assim, com toda a certeza, em ao menos uma cidade da Argentina, sua morte não será lamentada.
Para seus apoiadores, Menem foi o melhor governador que La Rioja já teve, seja quando de fato ocupou o cargo, entre 1983 e 1989, seja quando presidente, direcionando mais recursos federais do que a média para sua terra natal. Também foi alguém que assumiu a difícil missão de dirigir a Argentina ao final dos anos 1980. Um país dando os primeiros passos na redemocratização e sofrendo com as cicatrizes deixadas pelas ditaduras militares que assolaram o país: a humilhação nas Malvinas, os mortos, torturados e desaparecidos e a hiperinflação.
Antes de Menem veio Raúl Alfonsín, com esses mesmos desafios. Se destacou em algumas áreas, como a aproximação e formalização de laços mais estreitos com o Brasil, e malogrou em outras. Especialmente na economia, deixando a Argentina pior do que no início de seu governo. Alfonsín renunciou seis meses antes, garantindo uma posse antecipada ao político do interior que ostentava fartas costeletas no rosto e que abraçou o catolicismo por razões políticas.
Nascido em uma família síria, Menem foi criado muçulmano e se converteu ao catolicismo, pois a Argentina não era um país laico. Até 1994, a constituição determinava que o presidente tinha que ser católico apostólico romano. Ainda hoje a Argentina não é completamente laica, mas isso é outra discussão. A reforma constitucional de 1994, que retirou esse requerimento, foi promovida justamente por Menem, para que ele pudesse disputar uma reeleição, até então proibida pela Carta Magna.
Sucesso econômico?
Menem conseguiu tanto reformar a constituição quanto vencer a reeleição justamente pelo que seus apoiadores enxergam como seu maior sucesso: um bom momento econômico para a Argentina. Sob seu ministro da Economia, Domingo Cavallo, o país promoveu um pacote de estabilização monetária, a Lei de Conversibilidade, para combater a inflação. Em 22 de março de 1991, a taxa de câmbio da então moeda do país, a austral, foi fixada em relação ao dólar, um pra um. No ano seguinte, seria adotado o peso conversível, o atual peso. Esse processo de hiperinflação e trocas de moedas não é estranho ao Brasil e a vários outros países latino-americanos.
Na prática, a economia da Argentina foi dolarizada e, no curto prazo, a medida foi um sucesso. Entre 1991 e 1995, o PIB vizinho cresceu por volta de 8% ao ano, estimulado pelas exportações. Entre 1995 e 1998, a média foi de 6%. A balança comercial do país triplicou entre 1991 e 2000. Privatizações diminuíram a dívida estatal do país. Turistas argentinos tomaram o mundo de assalto, incluindo o Brasil. Tudo isso, entretanto, era um gigante com pés de barro. Primeiro, as crises econômicas da década de 1990 afastaram os investidores do país.
O desemprego crescia todo ano, de 6,1% em 1991 para 15% em 2000. A concentração de renda esmagou a classe média e, principalmente, o endividamento agora, seja do país, seja do indivíduo, era em dólar. Uma conta que chegou muito mais cara e muito mais amarga na virada do milênio. A percepção de que a conta que a Argentina estava pagando era culpa de Menem fez com que ele retirasse sua candidatura antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2003. Ele enfrentaria o futuro presidente Néstor Kirchner e todas as pesquisas indicavam uma surra eleitoral.
Ainda assim, em 2005 ele venceu as eleições para o senado por sua província natal. Altruísmo em representar sua terra? Talvez, mas improvável. O motivo mais forte para Menem ocupar um assento senatorial nos últimos quinze anos é o fato do cargo trazer privilégios jurídicos perante julgamentos penais. Casos envolvendo recebimento de propinas, esquemas de apropriação de dinheiro público, tráfico internacional de armas e uma possível “responsabilidade indireta” em uma explosão criminosa que deixou sete pessoas mortas e mais de trezentos feridos.
Contrabando de armas e explosões suspeitas
Entre 1991 e 1995, a Argentina, então governada por Menem, contrabandeou mais de seis mil toneladas de armamentos e munições para o Equador e para a Croácia. O país balcânico travava tanto sua guerra separatista contra a então Iugoslávia quanto sua guerra contra os sérvios em território Bósnio. Por isso, estava sob embargo de armas das Nações Unidas. Em relação ao Equador, o país travou a breve Guerra do Cenepa, em 1995, com o vizinho Peru, por uma diferença fronteiriça herdada do período colonial.
A Argentina é proibida de vender armas ao país andino durante um conflito pelos termos do Protocolo do Rio de Janeiro de 1942, que encerrou um conflito anterior e estabeleceu Brasil, Argentina, Chile e EUA como potências neutras e garantidoras da paz. Por isso, não poderiam exportar armamentos a um dos países envolvidos sem que o outro fosse notificado. Menem e o então ministro da Defesa, Oscar Camilión, assinaram três decretos secretos que autorizavam a venda das armas para o Panamá, nos dois iniciais, e para a Venezuela, no terceiro caso.
O episódio levantou suspeitas, pois o Panamá não possui Forças Armadas desde 1990, apenas uma força policial paramilitar. A partir de uma investigação do jornal Clarín, de março de 1995, o advogado Ricardo Monner Sans iniciou formalmente o caso na justiça. Em 3 de novembro de 1995, a Fábrica Militar de Armas de Río Tercero, uma cidade com menos de cinquenta mil habitantes na província de Córdoba, foi tomada por uma série de explosões, todas elas separadas por igual tempo.
Foi dali, uma instalação gerenciada pelas forças armadas argentinas, via a Dirección General de Fabricaciones Militares, que saíram as milhares de toneladas de armamentos e munições contrabandeados. Fuzis FAL apreendidos no Equador continham ainda as marcações de origem. Sete pessoas morreram, mais de trezentas ficaram feridas e a destruição atingiu um terço da cidade. Janelas despedaçadas, escombros nas ruas, carros destruídos e postes de iluminação derrubados.
A data do início das investigações e a data da explosão não são coincidências. A explosão foi intencional, para destruir provas do esquema de contrabando de armas. Essa foi a conclusão da turma do Tribunal Oral Federal Nº 2 de Córdoba, em seu julgamento, e a denúncia de um dos coronéis acusados pelo episódio. Depois de quase duas décadas, três coronéis e um major foram condenados a treze anos de prisão cada um, todos com cargos de responsabilidade diretamente ligados à explosão.
Pelo contrabando de armas, Carlos Menem foi condenado, em junho de 2013, a sete anos de prisão, o ex-ministro Oscar Camilión a cinco anos e meio e outras dez pessoas receberam penas de quatro ou cinco anos. No início do processo, entre junho e novembro de 2001, Menem ficou em prisão domiciliar provisória. No ano seguinte, fugiu para o Chile, terra de sua então esposa. Voltou para a Argentina apenas em dezembro de 2004. No ano seguinte se elegeu senador. Por isso, nunca cumpriu um dia de prisão após sua condenação pelo contrabando internacional.
Por seu possível envolvimento na explosão de Río Tercero e sua “responsabilidade indireta”, Menem teria que depor perante a justiça no próximo dia 24 de fevereiro, às nove da manhã. Em bom português, seria ele o mandante da explosão? O quanto ele sabia? Ao menos por enquanto, não saberemos, já que ele foi sepultado ao lado de seu filho no cemitério islâmico de Buenos Aires. Ainda assim, a prefeitura de Rio Tercero fez questão de postar em suas redes sociais que o município não iria aderir ao decreto de luto nacional. Menem foi declarado persona non grata na cidade. E no coração de muitos argentinos.
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