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Na semana que está terminando se celebra os cem anos do primeiro túmulo ao Soldado Desconhecido, um símbolo posteriormente adotado por diversos países do mundo. Sim, existem outros acontecimentos em desenvolvimento no mundo, e alguns deles tiram o sono de milhões de pessoas pelo globo, mas é também importante dar uma pausa, respirar e olhar para o passado, ver o que foi aprendido, evitar a idealização do passado e também notar que o mundo em que vivemos é bastante recente.
Breves atualizações sobre o mundo de hoje, então. Nos EUA, o Conselho Governamental de Coordenação da Infraestrutura das Eleições emitiu um comunicado afirmando que “as eleições de 3 de novembro foram as mais seguras da história americana", o estado do Arizona confirmou a vitória de Joe Biden no estado e Trump já teria confidenciado para pessoas próximas que a derrota é a realidade. Ainda assim, o presidente dos EUA não estabeleceu um grupo de transição, ao menos por enquanto.
No Cáucaso e no Oriente Médio, a Rússia anunciou que estabeleceu um grupo de trabalho com a Turquia, para “monitorar o acordo” em Nagorno-Karabakh. O anúncio fala apenas do monitoramento conjunto, não fala de tropas turcas no território do conflito, ao lado das forças russas. “Coincidentemente”, forças turcas iniciaram retirada de alguns postos na Síria, indicando uma possível barganha entre Moscou e Ancara. Claro que, mesmo que seja verdade, isso não será colocado ao público.
Na África, o governo etíope iniciou uma ofensiva contra separatistas da região de Tigray, ao norte, na fronteira tríplice com a Eritreia e com o Sudão, um conflito que pode transbordar essas divisas. Já na Costa do Marfim, o presidente Alassane Ouattara foi reeleito para seu terceiro mandato, com 95% dos votos, em uma eleição boicotada pela oposição, contra a falta de transparência do pleito. Problema similar ocorre na Tanzânia, onde o principal nome da oposição foi detido.
O sepultamento
Retornando à efeméride da semana, todos já devem ter visto no noticiário algo como “presidente Fulano participa de homenagem no túmulo do Soldado Desconhecido”, ou então referências em filmes e em documentários. Algo tão presente que parece que sempre existiu, uma tradição milenar. Nada longe da verdade. E a História por trás do primeiro desses monumentos, que inspirou todos os outros, é bastante bonita e serve de reflexão para outros episódios.
Ao final da Grande Guerra, que durou de 1914 a 1918, o império britânico, somando o Reino Unido, os domínios e as colônias, tinha que lidar com a memória de cerca de um milhão de mortos. Desses, mais de 200 mil nunca tiveram seus restos mortais localizados ou identificados. Ou seja, 200 mil famílias que não puderam se despedir dos seus, não puderam cumprir um dos mais importantes ritos de qualquer cultura, o de sepultar os seus mortos de maneira apropriada.
Também não tinham um memorial ou uma lápide onde prestar homenagens ou expressar seu luto. Nesse contexto, um capelão do exército britânico chamado David Railton fez uma sugestão ao governo de David Lloyd George, que foi aceita. Os restos mortais de um soldado desconhecido que tombou na França foi escolhido ao acaso, depositado em um esquife de maneira nobre, gravado e decorado com uma espada medieval diretamente da Royal Collection. O combatente foi postumamente condecorado.
O esquife foi então embarcado em um destróier da Marinha Real, com cerimônias tanto no embarque quanto no desembarque, com salvas de canhões dignas de um Marechal. No Onze de Novembro de 1920, o esquife foi transportado em cortejo pelas ruas de Londres, com uma multidão observando. À frente do cortejo, o então monarca Jorge V. O cortejo parou na Abadia de Westminster, onde são sepultados os monarcas britânicos, e o caixão foi carregado por marechais e almirantes até seu local de descanso final.
O sepultamento foi não apenas na abadia dos reis, mas no centro da nave, a posição de maior destaque possível. A guarda de honra da cerimônia foi formada por condecorados com a Victoria Cross, a maior condecoração militar britânica. Foram dias de uma cerimônia de luto nacional coletivo. A ideia do reverendo Railton era a de que cada família que perdeu um ente querido tivesse um lugar onde se despedir, e os restos mortais sepultados ali poderiam ser daquele familiar.
O símbolo
Claro, estatisticamente as chances são uma em mais de 200 mil, mas, ainda assim. O fato é que o soldado comum britânico foi colocado em pé de igualdade, na morte, aos reis e maiores condecorados. Uma representação da força coletiva da sociedade e do tamanho do trauma que a Grande Guerra trouxe para as populações envolvidas. Quase dois milhões de franceses e mais de dois milhões de alemães morreram. A Sérvia perdeu 900 mil pessoas – em proporção, um assustador número de quase um quarto da população.
Mais que isso, o túmulo do Guerreiro Desconhecido, numa tradução literal, representa a mudança do perfil do combatente e de como ele era visto. O soldado agora era um cidadão com representação política, com papel ativo na sociedade, não mais visto como oriundo da ralé ou um mercenário, como era a regra até meados do século XIX. Em contraste ao Soldado Desconhecido, os mortos de Waterloo foram enterrados em valas comuns, posteriormente exumados, triturados e seus ossos transformados em adubo.
Os poucos túmulos britânicos que existem das grandes batalhas da era Napoleônica normalmente são de oficiais e integrantes da nobreza. O soldado era descartável, bucha de canhão, ainda mais numa sociedade aristocrática e estratificada como o Reino Unido até as últimas décadas do século XIX. O dia é o Dia da Memória, no Reino Unido. A França, no mesmo período, sepultou o seu Soldado Desconhecido no Arco do Triunfo. Em 1921, foi a vez dos EUA e outros países progressivamente criaram monumentos similares.
O Brasil possui dois monumentos desse tipo, ambos lembrando os mortos na Segunda Guerra Mundial, um no Rio de Janeiro e o outro em Pistoia, na Itália. Tais monumentos podem ser interpretados como uma glorificação da guerra e a romantização da morte, mas também são um lembrete da monumental estupidez da guerra, dos milhões de vidas ceifadas, mais outros milhões de vidas traumatizadas para sempre. Órfãos, viúvas, mães, pais, amigos. Cada morto era um microcosmo em si.
Também são uma lembrança de uma das maiores crueldades que uma família pode ter que lidar, que é não poder se despedir dos seus mortos de acordo com seus costumes, sejam locais, religiosos, nacionais, o que for. As milhares de pessoas “desaparecidas” por ditaduras, por abusos de autoridades e por criminosos não são passíveis de “politização”, mas de absoluta ojeriza. Ao menos o luto de parte dessas famílias foi amenizado cem anos atrás, em meio aos reis.