Mais um ano, mais uma substituição de governo na Itália. O título dessa coluna é intencionalmente entusiasmado, não se trata do icônico e estereotipado personagem encanador italiano dos videogames, mas do possível novo premiê italiano, Mario Draghi, apelidado de Super Mario. No último dia 26 de janeiro, o então primeiro-ministro, Giuseppe Conte, renunciou ao cargo, após uma crise que inviabilizou sua coalizão parlamentar. Draghi foi convidado e corre o risco de se tornar mais um italiano moído pela fragmentação e instabilidade política do país.
Essa coluna de política internacional existe há cerca de dois anos e meio. Três anos, se contabilizadas colaborações pontuais anteriores. Nesse pequeno período, a Itália irá para o seu quarto governo. Primeiro, Paolo Gentiloni, premiê pelo Partido Democratico (PD), de centro-esquerda, até junho de 2018. Ele foi sucedido pelo primeiro gabinete Giuseppe Conte, que durou até setembro de 2019, mantido pelo Movimento 5 Estrelas (M5S), de centro, e pela Lega Nord, de Matteo Salvini, de direita. Em setembro daquele ano, Salvini foi colocado de escanteio e substituído pelo PD e outros dois partidos, um de centro-esquerda, Italia Viva (IV), do antigo premiê Matteo Renzi, e um de esquerda, Liberi e Uguali.
Se recortados os últimos dez anos, foram sete governos. Desde a Segunda Guerra Mundial, são absurdos sessenta e nove gabinetes, com uma média de apenas treze meses por governo. Apenas Alcide De Gasperi, no imediato pós-guerra, e Silvio Berlusconi, no início do século XXI, lideraram o governo pelo período de uma legislatura inteira, cinco anos, o que deveria ser a duração do mandato do chefe de governo. E, ainda assim, ambos passaram por redesenhos em seus gabinetes. Em contraste, no mesmo período pós-guerra, a Alemanha federal teve oito chefes de governo, enquanto o Reino Unido teve dezesseis. E nenhum desses ficou menos do que um ano no cargo.
Processo histórico
O que explica esse histórico italiano? Sem apelar para clichês de “italianos cabeça quente que falam alto enquanto gesticulam”. São dois fatores principais. Primeiro, a Itália existe como Estado desde 1861, mas ainda possui rachaduras enquanto Nação. Rivalidades e identidades regionais intensas, com uma inicial concentração de poder, político e econômico, no Piemonte. Mesmo o idioma não é completamente unificado, e o que chamamos de “italiano” é, na verdade, o florentino das elites intelectuais do século XIX, imposto como língua franca ao restante do país.
O período de unificação é sucedido pelo fascismo centralizador e totalitário de Mussolini. Quando cai o fascismo, as cicatrizes da guerra também afetam as dinâmicas internas do país. Ritmos diferentes de reconstrução que, paradoxalmente, não acompanharam o nível de destruição sofrido no país. Enquanto o norte recebeu mais recursos do Plano Marshall, o sul estava em situação muito mais devastadora, sendo campo de batalha por quase dois anos. Essa rachadura não é apenas lição de História, pode ser atestada em quase todos os últimos mapas eleitorais do país.
Nas últimas eleições, em 2018, a maioria do sul e as ilhas ficaram com o M5S, enquanto o norte votou em peso na Lega, com alguns pontos de PD no norte. Como anedota, quando o Napoli, principal time de futebol do sul italiano, joga contra seus adversários do norte, é comum faixas com dizeres como “Bem-vindos à Itália, napolitanos”. Então, existem clivagens regionais e culturais muito claras na Itália, que acabam sendo refletidas no jogo partidário. Hoje, são oito partidos com ao menos doze cadeiras na câmara baixa, mais 36 assentos pulverizados entre minorias linguísticas, partidos pequenos e representantes da diáspora italiana, como os deputados brasileiros.
O segundo fator é o fato de que, após a Segunda Guerra, para evitar um novo Mussolini, o cargo de primeiro-ministro foi esvaziado. Como o ditador fascista corroeu a estrutura política por dentro, a intenção foi evitar que isso fosse possível novamente. Como resultado, os premiês italianos precisam do parlamento muito mais do que nos países citados anteriormente. Qualquer reforma administrativa ou mudança legislativa mais profunda requer um voto de confiança, que, num parlamento pulverizado e amplo, sempre tem um preço. Nem sempre esse preço é pagável. Enquanto o Brasil possui 513 deputados e 81 senadores, a Itália possui 630 e 321, respectivamente.
Crise atual
Além dessas duas razões sistêmicas, a atual crise foi agravada pelo fato de que Giuseppe Conte é, na falta de uma palavra melhor, um poste político. Ele não possui partido e não havia ocupado nenhum cargo, seja executivo ou legislativo, anteriormente. É um jurista e professor universitário. Sem dúvidas de que é uma pessoa capaz e inteligente, não se trata de comentário sobre sua pessoa, mas sobre sua falta de sustentação política. Ele foi colocado no cargo como um representante independente e neutro, parte do acordo entre Salvini e Luigi Di Maio, líder do M5S. Como nenhum dos dois poderia ser o premiê, foi necessário encontrar uma figura “neutra”, um tecnocrata.
Quando Di Maio rompeu com Salvini e fechou uma nova coalizão com Matteo Renzi, o raciocínio foi o mesmo. Conte permaneceria, para manter os dois principais partidos no mesmo patamar. Veio a pandemia do novo coronavírus e, com ela, discórdia sobre as políticas para enfrentar o vírus, especialmente as sequelas econômicas da pandemia. Renzi, contrariado, ameaçou retirar seu partido da coalizão. Conte “trucou” a ameaça, jogando nas costas de Renzi a mancha de uma crise institucional no meio da pandemia, achando que Renzi cederia. Não funcionou, Renzi manteve sua postura e o governo ruiu.
Obviamente, todos ali possuem suas agendas partidárias. Conte, ao “trucar” a ameaça de Renzi, estava confiante em sobreviver ao voto de confiança no parlamento, o que quase aconteceu, se não fossem as abstenções. Ao fazer isso, ele esperava que o presidente Sergio Mattarella mantivesse com Conte a tarefa de formar um novo governo. Renzi, ao sair da coalizão, esperava derrubar Conte e apenas rearranjar o gabinete, mantendo a maioria parlamentar. Nenhum dos dois teve sucesso, já que parte do M5S recusou sentar na mesa com Renzi novamente. Conte ficou sem sua maioria, Renzi sem a maior bancada.
A coalizão de direita, formada principalmente pela Lega Nord, o Forza Italia de Berlusconi e o Fratelli d'Italia (FdI), dissidência radical de Berlusconi, com alguns integrantes abertamente simpáticos ao período fascista, pediu pela dissolução do parlamento e por novas eleições. No máximo, aceitariam um governo de união nacional enquanto durar a pandemia; ou seja, com todos os partidos integrando o gabinete. Salvini sabe que uma crise institucional no meio da pandemia é uma ótima arma eleitoral, podendo jogar o caos político nas costas de seus opositores e aumentar sua presença no parlamento. Todas as pesquisas indicam que, se uma eleição geral ocorresse hoje, a Lega Nord seria o partido mais votado e o FdI teria a terceira bancada, com uma chocante desidratação do M5S.
Chama o Meirelles
O presidente Mattarella se viu com um quebra-cabeças para montar e sem ter a imagem final como guia da tarefa. Não havia maioria para Conte, não havia maioria para Renzi e atender o pedido por novas eleições seria complicado demais, dada a situação sanitária na Itália. Restou tirar um coelho da cartola e chamar outro tecnocrata apartidário para formar um governo, Mario Draghi, o Super Mario.
O economista Draghi foi, de 2006 a 2011, chefe do banco central italiano e, de 2011 a 2019, presidente do Banco Central Europeu, além de passagens pelo Banco Mundial e por bancos privados. Caso o leitor permita uma analogia com um slogan das últimas eleições presidenciais brasileiras, Mattarella “chamou o Meirelles” deles, uma pessoa considerada de perfil “técnico” e com trânsito entre os diversos atores partidários.
Ainda assim, Draghi terá uma tarefa árdua pela frente. Primeiro, sofrerá do mesmo problema que Conte, a falta de uma base partidária confiável no parlamento. Segundo, caso assuma o cargo, será visto desde o início como uma solução de emergência e com prazo de validade, no meio de uma pandemia. Terceiro, enquanto Conte sempre foi discreto, Draghi já figurou em listas da Forbes, transitou por organismos internacionais e fundações, como a dos Rockefeller, passa longe de ser uma figura acomodada. Para formar um governo viável, vai ter que provar ser o Super Mario.