Avião derrubado em Kiev, capital da Ucrânia, em 25 de fevereiro| Foto: EFE
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Esta coluna começou de um jeito e foi concluída de outra. Claro que, em nosso espaço de política internacional, o assunto seria a invasão da Ucrânia pela Federação Russa. A constante atualização de informações e a velocidade dos acontecimentos, entretanto, fazia com que a coluna tivesse que mudar toda hora e, sabidamente, ela vai ao ar sob o risco da obsolescência em breve. Uma das razões para essa velocidade é o que vamos explicar aqui aos leitores, a estratégia russa de um ataque de decapitação.

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A mais recente coluna havia sido publicada logo após o discurso de Vladimir Putin do dia 21 de fevereiro, em que, além de criticar a própria ideia da existência da Ucrânia como uma nação separada da russa, orientou o parlamento russo a reconhecer as regiões controladas por separatistas pró-Rússia na bacia do rio Don. O reconhecimento foi recebido com declarações de repúdio por outras potências e uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU. Parecia que seria “apenas” mais um episódio de aplicação da Doutrina Karaganov, explicada naquela e em outras ocasiões, ou seja, uma interferência armada sob a justificativa de proteger russos étnicos fora das fronteiras da Federação Russa.

Invasão 

A situação mudou, no horário brasileiro, na noite do dia 23 para o dia 24 de fevereiro. Durante uma reunião do CSNU, forças russas não se limitaram ao território do Don, mas invadiram o território ucraniano em três frentes. Ao sul, pela Crimeia, ao norte, pela tríplice fronteira com Belarus, e, ao leste, pelas regiões controladas por separatistas. Some-se o fato de que forças russas estão também na região da Transnístria, em Moldova, ao oeste, e temos uma Ucrânia não apenas cercada, mas sem conseguir concentrar suas forças de defesa em apenas uma frente, sofrendo com um “cobertor curto”. Também há um bloqueio marítimo aos principais portos ucranianos, como Odessa e Mariupol.

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Mesmo com a superioridade militar russa, ainda existiam, e existem, várias incógnitas. Uma delas é: a Rússia estaria pronta para se comprometer a um conflito longo, no território do maior país localizado totalmente na Europa? Ocupar a Ucrânia não seria tarefa simples, e as forças ucranianas estão surpreendendo os russos em vários pontos. A opção seria que os russos se limitem aos dois oblasts no leste, mas para que invadir, então? Avancem até o rio Dnieper, que divide a Ucrânia? Finalmente, os eventos passaram a mostrar que a estratégia é de um ataque de decapitação rumo à capital Kiev.

Uma rápida observação, antes de prosseguirmos com a coluna. Para a identidade nacional ucraniana, em um processo de "formação das almas" que foi objeto de coluna em dezembro, é importante chamar a capital Kiev pela grafia ucraniana, Kyiv. O governo brasileiro reconhece e utiliza a grafia Kiev, e a coluna grafa assim por costume, não por apoio ou repúdio político a algum ator do conflito. Nem ao agredido, nem ao agressor. Como curiosidade, a grafia em português lusitano é Quieve. Outro exemplo é a importante cidade de Kharkov que, em ucraniano, é grafada como Kharkiv. Ou, ainda, Carcóvia.

Retornando, um ataque de decapitação é, em suma, avançar e tomar a capital o mais rápido possível. Ao fazer isso, capturar ou isolar o comando ucraniano, deixando as forças armadas no resto do país sem orientações claras de como agir. Também capturar as lideranças políticas, eventualmente substituindo-as por pessoas dispostas a colaborar com os ocupantes. Não seria a primeira vez que as forças armadas russas fariam isso na História. A estratégia da intervenção soviética no Afeganistão, em 1979, começou assim. Já no dia 24 de fevereiro foi anunciada uma ferrenha luta pela base aérea de Hostomel, nos arredores da capital. A captura do aeródromo permitiria o rápido transporte de forças de assalto aerotransportadas, mirando diretamente a capital.

Chernobyl

Enquanto combates também ocorriam em cidades do leste, como Sumy e Kharkov, perto da fronteira, foi surpreendente que a luta já estivesse na capital em tão pouco tempo. Algo completamente intencional. Ainda no dia 24, o prefeito da cidade, o ex-boxeador Vitali Klitschko anunciou um toque de recolher. Além do ataque aerotransportado, uma coluna avançava do norte, pela tríplice fronteira entre Rússia, Ucrânia e Belarus. Um dos primeiros objetivos desse avanço foi tomar a Zona de Exclusão de Chernobyl, onde ficam os restos do reator nuclear que explodiu em 1986, confinado em seu sarcófago de contenção.

Logo surgiram teorias mirabolantes na internet para explicar as imagens. Videogames e filmes foram evocados. Seria para evitar que a Ucrânia tivesse acesso ao material radioativo? Não, o que nem faria sentido, já que a Ucrânia conta com quatro usinas nucleares totalmente operacionais. Seria para usar os escombros no esforço de guerra russo? Não, ali só estão riscos, nenhum benefício, e ninguém vai se atrever a mexer nos restos do maior desastre nuclear da História. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, tentou usar a ofensiva ao seu favor, afirmando que os riscos do ataque russo eram uma “declaração de guerra contra toda a Europa”.

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O motivo do avanço russo por ali foi bem mais pragmático e prosaico do que pode parecer. Estamos falando de uma enorme área sem assentamentos permanentes, sem população, sem bases militares, logo ao norte da capital Kiev. Quando da explosão do reator quatro, em abril de 1986, inclusive, as chamas, com um tom azulado da radiação, podiam ser vistas desde Kiev. Ou seja, a Zona de Exclusão foi um grande “atalho” militar, possibilitando um rápido avanço sem grandes resistências na direção de um cerco da capital ucraniana. Para piorar a situação dos ucranianos, permite um avanço pelas duas margens do Dnieper.

“Tempo está acabando”

Na manhã desse dia 25, pouco antes desse texto ir ao ar, o perfil oficial do Ministério da Defesa ucraniano nas redes sociais pediu que a população de Obolon, distrito da zona norte capital, resistisse e “usasse coquetéis molotov”. Um tom de desespero que não emite bons sinais. Rapidamente surgiram vídeos de trocas de tiros no mesmo distrito, o que remete a outra preocupação para os ucranianos. A possibilidade de sabotadores e simpatizantes da Rússia em seu território, a famigerada “quinta coluna”.

Um conselheiro do presidente ucraniano, Mikhail Podolyak, afirmou que a “guerra precisa parar” e que seu governo estava pronto para negociar “neutralidade” com a Rússia. Por volta das sete da manhã, no horário de Brasília, a mídia italiana publicou que Mario Draghi, premiê da Itália, afirmou que não conseguiu cumprir uma videoconferência com Zelensky. O presidente ucraniano precisou buscar abrigo e disse que o "tempo estava acabando".

A rápida queda de Kiev poderia significar um novo governo “fantoche” dos russos, embora, por exemplo, o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, já tenha dito que o atual governo que seria um fantoche de neonazistas e do Ocidente. Ou seja, não fariam muitas insistências sobre a legitimidade do atual governo. Principalmente, a Rússia poderia argumentar que, em questão de dias e com “apenas” centenas de mortos, a disputa foi resolvida. O que está longe de ser verdade, já que os eventos dos últimos dias ainda vão ressoar por algumas décadas, na economia, na política internacional e no desejo de revanche.