A China tem progressivamente expandido sua influência pelo mundo e conseguiu ser mediadora em um cenário em que os Estados Unidos falharam. No dia 10 de março, foi divulgado um comunicado trilateral assinado por Arábia Saudita, Irã e China, anunciando que os dois países do Oriente Médio estavam normalizando suas relações diplomáticas, mediados pelo gigante asiático. Essa notícia vai impactar a região e o mundo pelos anos seguintes e liga um alerta em Washington.
As duas potências regionais romperam relações oficialmente em 2016, após a embaixada saudita no Irã ter sido invadida por manifestantes. O protesto era contra a execução saudita, um país de maioria sunita e lar da vertente extremista do Wahabismo, do clérigo xiita Nimr al-Nimr. O Irã é o maior país xiita do mundo e os sauditas acusavam o clérigo de terrorismo, por sua defesa dos direitos da minoria xiita, suas críticas ao governo saudita e, principalmente, pela sua defesa do separatismo da Província Oriental.
A província representa considerável parcela do país como um todo e é lar da minoria xiita saudita, que vive perto da costa do golfo Pérsico. Principalmente, é o principal polo de produção de petróleo saudita, incluindo alguns dos maiores campos de hidrocarbonetos do mundo. Reprimir os xiitas e o separatismo é, então, uma pauta de suma importância para a casa Saud. Curiosamente, o Irã também enfrenta questões sectárias em suas regiões ricas em petróleo, de população árabe.
Mesmo antes da ruptura, Irã e sauditas travavam uma “guerra fria” por influência no Oriente Médio, disputa agravada após a ruptura. Tal “guerra fria” foi, inclusive, tema de uma série de textos especiais aqui em nosso espaço de política internacional, anos atrás. As duas potências regionais estão em lados opostos em conflitos na região, na Síria e no Iêmen, e apoiam atores antagônicos no Líbano, no Iraque e no Bahrein. No que concerne aos conflitos, o acordo entre sauditas e iranianos deve ser visto com cautela.
Conflitos regionais
A aproximação entre sauditas e iranianos não necessariamente significa a concórdia em todas essas pautas, ou, ao menos, não no curto prazo. Provavelmente o foco inicial dessa nova cooperação deverá ser encerrar o conflito no Iêmen, uma enorme tragédia humanitária. Como explicamos aqui em abril de 2020, entretanto, hoje o conflito iemenita é tripartite, e os separatistas apoiados pelos Emirados Árabes Unidos não necessariamente ficarão satisfeitos com um acordo entre o governo pró-saudita e os rebeldes houthis xiitas.
Outro possível foco de cooperação deve ser a Síria, onde a guerra civil perdura especialmente devido ao apoio turco a parte da oposição. As forças apoiadas pelos sauditas já foram, em maioria, derrotadas e, na prática, o governo Assad é o vencedor do conflito, apoiado pela Rússia e pelo Irã. As delegações árabes que visitaram a Síria após o recente terremoto, mais o novo acordo, devem abrir caminho para a normalização das relações entre a Síria e a Liga Árabe.
No Líbano, entretanto, os dois países devem continuar em lados opostos, vide a recente crise que envolveu o então primeiro-ministro Saad Hariri, sunita e aliado saudita. Já o Irã apoia o grupo xiita Hezbollah, um “Estado dentro do Estado” no Líbano. No Bahrein, manifestações da população xiita, maioria, foram apoiadas pelo Irã, enquanto a família real, sunita, é aliada saudita. Já a presença saudita no Iraque não é tão expressiva e deve, no curto prazo, continuar antagônica aos interesses iranianos.
Além de estarem em lados opostos nos conflitos regionais, Irã e sauditas frequentemente trocavam acusações sobre ataques a navios petroleiros e fornecimento de armas para grupos regionais. Pelo comunicado sobre a normalização de relações entre os dois países, as respectivas embaixadas serão reabertas em dois meses, além da retomada de acordos prévios de cooperação em temas de comércio e de segurança. Além do eventual benefício regional, diminuir as tensões atende aos interesses mútuos diretos dos países.
Interesses chineses
E a China? Curiosamente, um mês atrás as relações entre China e Irã foram tema de uma coluna aqui em nosso espaço. Na ocasião, explicamos que essas relações se tornaram ainda mais estratégicas nos últimos anos, com obras de infraestrutura, petróleo e dezenas de bilhões de dólares em acordos potenciais. Principalmente, o antagonismo dos EUA e suas políticas de sanções aproximaram os dois países e abriram a grande economia iraniana para investimentos chineses.
Os vínculos entre sauditas e a China também se fortaleceram nos últimos anos. A primeira visita ao exterior de Xi Jinping depois da pandemia foi ao país árabe e a China é o maior comprador de petróleo do mundo, produto em que os sauditas lideram o ranking mundial. Outra relação entre os dois países que tem ganhado corpo é a armamentista. O reino saudita assinou um convênio para produzir drones chineses em seu território, além de comprar cerca de US$ 10 bilhões em aparelhos.
A China também é a fornecedora dos mísseis balísticos utilizados pelos sauditas, incluindo uma venda recente que continua opaca. Ironicamente, a venda, por volta de 2017, visava conter o poderio iraniano na área de mísseis balísticos. A Arábia Saudita é um dos maiores compradores de armas do mundo, especialmente de equipamentos originados nos EUA, mas, nos últimos anos, buscou diversificar seus fornecedores, para não ficar refém de um eventual boicote ou distensão com Washington.
Se os chineses deram um passo importante para se afirmar cada vez mais como uma potência global e em sua presença no Oriente Médio, isso também está relacionado com o distanciamento da região em relação aos EUA. O Irã, como dissemos na coluna de um mês atrás, foi “jogado no colo” da China pelo governo Trump, que retomou a política de sanções contra o Irã, rasgando o acordo nuclear assinado em 2015 na gestão Obama. Na época, os iranianos desejavam investimentos especialmente europeus.
EUA, o maior perdedor
Já os sauditas se afastaram de Washington com as diferentes ameaças de congressistas de bloquearem vendas de armas ao país árabe, por manter laços com a Rússia no âmbito do petróleo e pelo discurso do governo Biden de cobrar providências da monarquia pelo assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que tinha nacionalidade dos EUA. Importante frisar o termo discurso, já que, na prática, o governo Biden pouco fez comparado ao que o candidato Biden prometia fazer durante sua campanha.
A China não está preocupada em cobrar outros governos em pautas de direitos humanos. Isso está presente, inclusive, na nota trilateral, que fala em respeito pela soberania e “não-interferência em assuntos internos”. Isso pode se aplicar a uma miríade de temas, incluindo a prisão de opositores, repressão de protestos e similares. Lembrando que o Irã é o país que mais executa pessoas no mundo, e a Arábia Saudita ocupa o terceiro lugar no ranking, ambos os países sofrendo pressão internacional por isso.
Essa relação também é de via dupla. Os sauditas, por exemplo, defendem a China no contexto das acusações de violações de direitos humanos na província de Xinjiang, com a minoria uigur, muçulmana. Isso não é nem um pouco desprezível, ter o país guardião da cidade sagrada do Islã como seu aliado contra uma acusação de repressão contra uma população muçulmana. Isso também serve para os sauditas darem um recado aos EUA, de que não estão subordinados ao alinhamento com Washington.
No fim das contas, os EUA foram os maiores perdedores nessa situação. Observam o aumento da influência e do prestígio de uma potência rival, que age como mediadora onde Washington agiu como instigadora. Vê o sufocar do Irã pelas sanções ficar cada vez mais distante, com diversificação de opções. Recebem um recado de descontentamento de seu principal aliado regional, os sauditas. E a China, além de mediadora, garante seus interesses econômicos em uma região estratégica.
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